domingo, 21 de julho de 2013

Ferro Alves, um homem do Norte do concelho de Abrantes - 3

(continuação)

A República

Antes de nos adiantarmos na abordagem da actividade política de Leonel da Dores Ferro Alves, procuraremos deixar breves notas de enquadramento histórico, já que se os homens podem determinar os factos e a história, o inverso também poderá ser verdadeiro. 

O sentimento republicano atravessara quase todo o século XIX, inspirado, porventura – mas não apenas – nos valores proclamados pela Revolução Francesa, em 1789: Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Teve diversos mentores e cultores, com diferentes visões e diferentes programas de evolução e transformação da sociedade. Teve visibilidade a acção da chamada Geração de 70, desencadeada a partir de Coimbra por Antero de Quental, Eça de Queirós e Oliveira Martins, naquilo que ficaria conhecido como “a questão coimbrã”. O grupo acabaria por vir par Lisboa e alargar-se, passando a organizar as chamadas “conferências democráticas do casino”, que acabaram por influenciar sobretudo a literatura, onde o romantismo decadente se defrontava com o realismo nascente, por assim dizer – mas não deixou de influenciar o pensamento político.

De qualquer modo, em 1870 foi constituído um Diretório, que viria a ser o embrião do Partido Republicano, legalmente criado a 25 de Março de 1876, com consentimento do rei D. Luís.

Os adeptos do ideal republicano tinham como importante a separação da igreja e do estado, ou seja, defendiam o direito à liberdade religiosa mas eram contra o que entendiam ser o papel excessivo da igreja nas questões do estado, designadamente nos meios rurais.

Como sabemos, D. Carlos e o príncipe herdeiro, Luís Filipe, foram assassinados no Terreiro do Paço em 1908. D. Manuel II acabou por ocupar o trono e ser rei, mas a monarquia não rira longe. Em 5 de Outubro de 1910 José Relvas proclamava a República, na varanda da Câmara Municipal de Lisboa e a família real partia para o exílio.

Bem cedo surgiram as sublevações militares e as tentativas de restauração monárquica, com tiroteios, mortes, perseguições, prisões e fugas. Surgiam as divisões, e em 1912 o Partido Republicano Português já se fragmentava: Evolucionistas, Unionistas e Democráticos. A partir de 1920 a ocupação do poder caberá, maioritariamente, ao chamado Partido Democrático (1), e é lá que vamos encontrar Ferro Alves.

Portugal era um país pobre e atrasado, com elevadas taxas de analfabetismo e de mortalidade, mas a conjuntura internacional também não ajudava. Vejamos, muito resumidamente:

. Temos uma Europa dividida e com conflitos de interesses que passam pela cobiça dos territórios sob administração portuguesa em África. Portugal vê-se obrigado a enviar tropas, para afirmar a soberania.

. A eclosão da I Guerra Mundial (1914 a 1918), acaba por arrastar-nos para os campos de batalha. De certo modo, seria uma tentativa de afirmação da República, no contexto europeu e no quadro dos tratados que vinculavam Portugal. Isto acentuou as divisões existentes, com consequências ao longo dos anos, pois se uns eram a favor da intervenção, outros eram contra.

. A Revolução Russa, em 1917, com a extrema violência que a marcou, criava tensões e receios de vária ordem, com implicações de natureza diversa, que não apenas políticas e ideológicas

Entretanto, as relações entre a Igreja e o Estado mantinham-se tensas e conflituosas, com excessos de ambas as partes, com profundas e por vezes violentas divisões no seio da própria igreja, e nem as aparições de Fátima, em 1917, apaziguaram ânimos ou rivalidades.

As convulsões políticas e sociais e as sublevações militares iriam continuar a ser constantes. Vários historiadores costumam referir-se aos jogos de interesses, ao caciquismo e aos actos eleitorais de duvidosa seriedade, para não dizer escandalosamente fraudulentos.
Imagem do Jornal Baluarte, editado por Ferro Alves,retirada da obra indicada (2), com a devida vénia
Jornalismo e política

Abrantes teve sempre um papel activo ou de envolvência em momentos decisivos da vida nacional. Por um lado, a situação geográfica; por outro, muitos dos seus naturais foram militares. Isto, sem prejuízo de outras razões que possam aduzir-se. Percebe-se, então, a existência de imprensa periódica, com objectivos informativos e publicitários, passando pela promoção e debate de ideias, de cariz político e religioso, no contexto particular da I República, quando Abrantes tem 14 freguesias.   

Vamos, então, a Ferro Alves.

O Baluarte iniciou a publicação em 17 de Fevereiro de 1924, como “quinzenário republicano defensor dos bons princípios democráticos”. Passou a semanário em 17 de Maio de 1925. Eduardo Campos (2) diz-nos que Ferro Alves abandonou o jornal a partir de 27 de Junho de 1926, voltando em Agosto seguinte. Estaria em causa o visionamento pela Comissão de Censura, e a publicação seria suspensa em 17 de Outubro seguinte.

Notemos que em 28 de Maio de 1926 ocorrera o golpe miliar que pusera fim ao governo de António Maria da Silva e à I República, abrindo caminho à instauração da chamada Ditadura Nacional.
Baluarte é o jornal que sucede ao anterior, iniciando a publicação em 1 de Janeiro de 1927. Ferro Alves é editor e analista político. O jornal afirma-se republicano, como o anterior. Porventura, há aqui uma afronta ao novo quadro político e as relações com a Censura vão de mal a pior. Houve uma edição especial em 17 de Fevereiro de 1930, com a particularidade das colaborações de Manuel Alves Passarinho (pai de Leonel) e de Rafael Alves Passarinho (seu tio e padrinho). A publicação terá cessado em 4 de Maio de 1930.

Em finais de Dezembro de 1928, era imposta a Leonel das Dores Ferro Alves residência fixa em Aldeia do Mato. Eduardo Campos (3) dá-nos esta indicação, anotando tratar-se do editor do jornal republicano Baluarte, que, ainda assim, continuaria a publicar-se.

Curiosamente, em 16 de Abril de 1929, o Pittsburgh Post-Gazette, em língua inglesa, noticiava a prisão de António Maria da Silva e de Ferro Alves, em Lisboa, citando uma notícia publicada no jornal O Comércio do Porto. De forma lacónica, diz-se que não se conhecem as razões e que António Maria da Silva é líder do Partido Democrático.
Voltando ao 2.º post desta série, recordamos que em 24 de Julho de 1930 Leonel das Dores Ferro Alves chegava à Ilha Terceira, nos Açores, como deportado, e saído da cadeia do Aljube. Por razões meramente políticas, com o Partido Democrático em pano de fundo!



Ficam muitas dúvidas e lacunas. Não nos foi possível clarificar mais as coisas, documentalmente. Proximamente falaremos dos livros que este conterrâneo deixou publicados: “A Mornaça” e “Os Budas”.

(continua)

Manuel Paula Maça
manoel.maza@gmail.com
 
 (1)  A designação de Partido Democrático não é consensual entre historiadores, mas é consentida, já que para muitos é uma cisão do PRP, que não se extinguiu. Ferro Alves assume a designação.
(2)   A Imprensa Periódica de Abrantes, Câmara Municipal de Abrantes, 1993.

(3)   Cronologia de Abrantes no Século XX, Câmara Municipal de Abrantes, 2000.

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segunda-feira, 1 de julho de 2013

Maria Silvéria, a mulher que trazia cartas - Carreira do Mato

A mulher que trazia cartas

Datam de perto de 1960 as minhas memórias da Ti Maria Loba. Assim era conhecida a nossa conterrânea Maria Silvéria, nascida na Carreira do Mato no longínquo dia 24 de Abril de 1898. Se ainda estivesse connosco teria, hoje, 115 anos.

Como a generalidade das pessoas do tempo, coube-lhe trabalhar na vida agrícola e no pinhal, onde a dureza imperava. A madeira era cortada, descascada e serrada por força manual, em geral a cargo dos homens. Às mulheres cabia, sobretudo, recolher e transportar os toros à cabeça… e transportar água – por tudo isto passaram a ti Maria Loba e muitas outras mulheres.

Mas é como uma espécie de “carteira” que queremos recordá-la, num tempo em que o correio da nossa terra era enviado e recebido a partir da Aldeia do Mato (sede da freguesia), a cerca de 2 quilómetros de distância.

Todos os dias lá ia e vinha esta mulher abnegada, descendo e subindo pela Cofeira, ao sol ou à chuva, ao calor ou ao frio, para levar e trazer cartas. Se tardava no regresso, os mais ansiosos colocavam-se em local estratégico a tentar avistá-la no caminho íngreme, até que alguém dizia “já lá vem”. Simbolicamente, o seu saco de pano levava e trazia notícias, o que é dizer que trazia alegrias e tristezas, ansiedades, incertezas, venturas e desventuras, notícias da guerra na India e em África, sonhos, estados de alma e declarações de amor. As cartas eram, depois, distribuídas ao balcão do estabelecimento do Sr. Martinho Paulino e da Dona Isaltina, sob olhares piedosos, atentos e curiosos. Mas consta que a Ti Maria guardava a correspondência amorosa destinada a muitas jovens raparigas, a quem as entregava pessoalmente com algumas recomendações, evitando-lhes embaraços na relação com os pais austeros e cautelosos – um ato de amor maternal, afinal.

Por volta de 1960, o seu trabalho era remunerado em 2$50 (1,25 cêntimos, hoje) por cada viagem de ida e volta, embora nos falte informação relativa aos últimos anos. 

Registamos, ainda, que quando uma criança tinha que se deslocar da Carreira à Aldeia do Mato ia ou vinha, normalmente, na companhia desta mulher que o tempo levou. Era outra vertente do seu trabalho e da sua função social.

Como o tempo a levou, ficam estas palavras como tributo à sua memória, em mais um retalho da história da Carreira do Mato, numa espécie de agradecimento póstumo de quem algumas vezes subiu e desceu a Cofeira ao seu lado, sem medo, com companhia e proteção.
 
Maria Silvéria em foto cedida pela filha Alexandrina
Nascimento: 24 de Abril de 1898.
Lugar: Carreira do Mato, freguesia Aldeia do Mato, concelho de Abrantes
Pai: Manuel Francisco Silvério.
Mãe: Ana Silvéria.
Casamento dos pais: 25 de Julho de 1892.
Avô paterno: Francisco António.
Avó paterna: Maria do Carmo.
Avô materno: António Pedro.
Avó materna: Silvéria de Jesus.
Batizado: 1 de Maio de 1898.
Padrinho: Manuel Lopes.
Madrinha: Maria José.
Pároco: António Alves Barradas.
Irmãos: Francisco (Chico Lobo), José, António (gémeo de Maria, falecido em 18 de Junho, com c. de 2 meses), António (nome do irmão falecido) e Clarice.
 
Correios - Breve Olhar Histórico
Ao logo dos tempos, o homem sempre teve necessidade de comunicar: para declarar ou dar notícias da guerra, para divulgar os nomes dos vencedores dos jogos olímpicos, para aplicar leis, para cobrar impostos, ou por quaisquer outras razões determinadas pelo processo evolutivo da organização e do funcionamento das sociedades.
A questão era particularmente difícil antes da invenção da escrita, pelo que se recorria aos famosos sinais de fumo, ao rufar de tambores, ou, mesmo, a mensageiros que aceitavam a missão de ir transmitir verbalmente um recado ou uma ordem a qualquer lado, sempre na dúvida da chegada ao destino, já que nessas viagens muitos eram os perigos que espreitavam e punham em risco a vida do mensageiro.
Mas mesmo depois da invenção da escrita, outros desafios se colocam para a afirmação da nova forma de comunicação. São necessários materiais, instrumentos e tinta! Continuará, porém, a colocar-se o problema das distâncias.
Os primeiros materiais utilizados terão sido placas de barro cozido e de madeira, e peles de animais, mas a questão não é apenas de comunicação, mas também de fixação de códigos legais, de acordos, de contratos, de preceitos religiosas, da cartografia e do próprio conhecimento científico.
A invenção do papel é, geralmente, atribuída aos chineses e situada antes de Cristo, embora pareça que os segredos do fabrico se mantiveram guardados durante muitos e longos séculos. O fabrico do papel em Portugal terá começado em Leiria, em 1411. Pouco depois encontramos “engenhos” para o seu fabrico, também, na zona da Lousã e no norte do distrito de Leiria, nas margens do Zêzere, o que nos leva a perceber que outras fábricas se tenham instalado gradualmente nas margens do rio Nabão, na zona de Tomar…
Não esquecendo a romântica ideia da mensagem escrita em papel e acondicionada dentro de uma garrafa bem fechada, que seria lançada às águas, assumem particular e relevante importância os pombos correio, que tão úteis foram, ainda no contexto da II guerra mundial. Claro que estas aves tinham que ser preparadas e eram frágeis, havendo relatos de que o inimigo colocava falcões ou outras aves de rapina nos seus corredores de circulação… e lá se ia o pombo e se perdia a mensagem, que até poderia acabar nas mãos do inimigo.
É no reinado de D. Manuel I (1520) que surge, entre nós, o embrião dos serviços dos correios atuais, que conhecerá assinaláveis avanços no período da ocupação espanhola dos Filipes e no reinado de Dona. Maria I.
Daqui em diante, o processo organizativo é gradual, tanto em Portugal como no estrangeiro. Estabelecem-se percursos e calendários, adotam-se os transportes possíveis. São introduzidas as estampilhas ou selos, que definem que o pagador do serviço é quem envia a carta. Fazem-se acordos internacionais.
A sociedade tecnológica trouxe outras formas de comunicar. Ainda no século XIX vieram o telégrafo e o telefone. Veio a transmissão sem fios, para som e imagem, que daria lugar à rádio e à televisão. Vieram os computadores, o correio eletrónico, as redes sociais. Porém, passa-nos despercebido este processo evolutivo ao longo dos milénios.
Mas, mesmo hoje, quem não gosta ainda de receber uma carta tradicional de uma pessoa que lhe é querida?
Bibliografia consultada e recomendada:

Manuel Paula Maça
 
 
 
 
 

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