terça-feira, 7 de outubro de 2008

CARREIRA DO MATO - MEMÓRIAS



CARREIRA DO MATO – MEMÓRIAS

O Ramo de Palmeira

Nascer na Carreira do Mato no princípio da segunda metade do século XX era apenas uma coisa natural, um facto sociológico irrelevante na teimosa rotina do tempo. Não uma ventura nem uma desgraça, não uma fatalidade urdida por insondáveis desígnios com que teríamos de estabelecer pactos de acomodação. Uma realidade com as marcas do inevitável, com caminhos, atalhos e barreiras difíceis de transpor, onde não se entrava e donde dificilmente se saía, com o isolamento, as carências, a doença e a morte a rondarem, numa cumplicidade inevitável: mortalidade materna e infantil; acidentes de trabalho; a morte e as sequelas físicas e psíquicas, a que a medicina conferia vagamente a etiologia de causa desconhecida.
O rio Zêzere quase serpenteava à volta, e há abraços que sufocam. As águas da albufeira do Castelo do Bode começaram a subir em 1950, mas a alusão de Miguel Torga aos rios líricos represados ficará para depois.
Claro que o Norte do concelho de Abrantes seria, também e no fundo, um retrato a preto e branco do país mais atrasado da Europa Ocidental, não obstante a ilusão do Império e da mítica predestinação para dar mundos ao mundo.
Mas o bem e o mal não existem no absoluto ou no estado quimicamente puro, por assim dizer. Afinal, havia o contacto com a natureza, em toda a sua pujança e em todo o seu esplendor: o céu estrelado, por onde a minha avó sabia ver as horas; uma lua que esclarecia as mulheres grávidas ou fornecia indicações úteis para a vida agrícola; o cheiro inebriante da terra com as chuvadas certeiras de Setembro, ante o troar dos trovões e a grandeza assustadora dos relâmpagos que rasgavam o céu em línguas de fogo azul; havia o chilrear envolvente dos pássaros, ao sabor das estações; o gorjeio nocturno das corujas, condenadas a cadáveres crivados de chumbo, penduradas num pau alto, bem visível, para assustar e espantar das sementeiras outras aves atrevidas; o latir dos cães subnutridos e escanzelados, almejando por escassos e incertos restos de comida; os galos que inundavam as madrugadas com sonoridade, num despique de cantares fogosos. E havia uma solidariedade humana enorme, a que cediam as tricas e as desavenças pessoais, quando o infortúnio ameaçava ou a fatalidade se abatia sobre algum membro da comunidade, porque aí ninguém estava sozinho.
Claro que ao longo da noite a aldeia também estava povoada de entes sobrenaturais e misteriosos, como almas do outro mundo e lobisomens, com que era preciso saber lidar através de um manancial de rezas, amuletos e rituais. A própria alma do meu avô Maneiras vinha do além e vagueava pela noite, a cumprir misterioso fadário, porque em vida lera o Livro de São Cipriano! As encruzilhadas eram pontos a evitar; o cantar de um galo ou o uivar de um cão, à meia-noite, poderiam ser avisos ou maus presságios. Até o acto nocturno de despejar a água de lavar os pés tinha regras e horas próprias!
Finalmente, a graça de Deus era imensa e chegava para todos. Um crucifixo e umas litografias de santos nas paredes, se possível complementadas em eficácia por um ramo de palmeira na casa de fora, poderiam dar protecção à família, ali, numa aldeia onde a resignação e a acomodação não faltavam.
Lembro-me muitas vezes do nosso ramo de palmeira, à luz pálida e insegura do candeeiro a petróleo, complemento precioso das orações a Santa Bárbara, quando as trovoadas nocturnas se abatiam pelo Fojo e pelo Cabeço da Lebrinha adiante, vergando e arrancando impiedosamente os pinheiros indefesos.
Afinal – dizem os livros – a palmeira colhera ou dera nome milhares de anos atrás, em longínquas paragens do império de Salomão, na actual Síria, numa zona de oásis chamada Palmyra.
E Palmira era o nome da minha mãe!

Torre da Magueixa, 6 de Outubro de 2008 - maza.manoel

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