quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

DIA DOS NAMORADOS

                         











DIA DOS NAMORADOS,  LDA                                                                      

                                                       "People carry roses
                                                                          and make promises by the hours.
                                                                            My love, she laughs like the flowers
                                                                Valentines can't buy her!"
                                                                                       Bob Dylan, Love Minus Zero, no Limit.
                                                                                                                                  (In Bringing It All Back Home, 1965)

Nos tempos da minha adolescência em Lisboa, os sonhos e os sentimentos tinham uma espécie de corredores de circulação clandestinos (julgo que seria por justificáveis razões de segurança pública). Pensava-se clandestinamente; sonhava-se de forma secreta ou envergonhada; reprimiam-se ou recalcavam-se as pulsões e os confusos desaires da adolescência; amava-se na cumplicidade do silêncio e havia questões que eram arquivadas em ficheiros que ficavam ganhando poeira no tempo, amarelecendo dentro das cabeças, para descodificar um dia, já que (parafraseando um bom amigo e distinto militante da vida) o tributo à adolescência paga-se sempre... ou fica a dever-se!
No Liceu feminino Maria Amália Vaz de Carvalho, as prestimosas irmãs Guardiola tinham desempenhado o delicado papel de zeladoras da moral vigente. Os rapazes, esses, não perderiam pela demora, já que o serviço militar faria deles uns homenzinhos (adultos à pressa?), num eficaz processo de metamorfose, com uma enriquecedora digressão de dois anos por terras de África.
Aportavam a Lisboa discos discretamente trazidos do estrangeiro, pois era em França que os nossos cantores mais perigosos (se calhar, eram clandestinos ou cadastrados) iam gravar sons e vozes. Valia-me o amigo Tomás, empregado de uma editora discográfica, num processo em que às vezes até a amizade parecia ter que ser clandestina. Tempos que o tempo levou!
Nessa altura, qualquer aprendiz da língua inglesa tinha uma correspondente com quem trocava cartas onde se falava de música e de modernices. Em França, Jean Paul Sartre insistia que "o existencialismo é um humanismo" e que "o homem está condenado a ser livre"; Georges La Passade começava a leccionar em Vincennes, silenciando-se alguma contestação na velha república. Em Londres, Picadilly Circus e Trafalgar Square resplandeciam de hippies, e os Rolling Stones davam concertos em Hyde Park, enquanto Bob Dylan e muitos europeizados Scott Mackenzies promoviam os festivais da Ilha de Wight, de que o Melody Maker e o Disc and Music Echo iam dando notícias e fornecendo fotografias para as paredes do quarto. Os rapazes de Liverpool, dando pelo nome de Beatles, haviam irrompido com All you need is Love; Jane Birkin e Serge Gainsbourg atrapalhavam a moral vigente com Je t'aime, moi non plus, atempada e prudentemente proibido; John Lenon e Yoko Ono, obstinadamente teimosos, cantavam Give Peace a Chance, com a sua Plastic Ono Band. Apesar dos 95 anos de idade, Bertrand Russell escreveria, ainda, Crimes de Guerra no Vietname (1), em finais da década de 60.
Uma vez a Jackie Pattison enviou-me, de Londres, um cartão em forma de coração, com uma dedicatória. Era um Valentine! Sabia que, para a cultura britânica, 14 de Fevereiro era o dia dos namorados ou Saint Valentine's day, como Mr. Plumbly me tinha explicado, um dia, no Cambridge School, na avenida Guerra Junqueiro. 
Nessa época chegou-me uma bobina gravada, com uma canção em que Bob Dylan enaltecia uma amada que falava como o silêncio, que era pura como o gelo e como o fogo, mas que não ia em Valentines!
Na sociedade portuguesa já se vinha mercantilizando o Natal, e os agentes comerciais quase nos tinham imposto a celebração do dia da mãe duas vezes por ano. Falo em mercantilizar, porque se tem cultivado essencialmente o aspecto exterior e material dos eventos. Em detrimento dos sentimentos e da afectividade que devem ser apanágio de cada dia, estabeleceu-se uma prática e uma cultura de embrulhos e de laços, em que quem fica embrulhado e enlaçado somos nós, protagonistas, activistas e accionistas da ânsia desenfreada da sociedade consumista, mesmo que anónima e de responsabilidade limitada. Se não, atente-se no assédio à volta de crianças, adolescentes e adultos, nestas datas festivas em que se subestima o que é verdadeiramente importante e essencial na relação entre as pessoas, ao ponto de o próprio significado religioso das datas ser frequentemente esquecido e ignorado, num contexto em que a festa é de quem tem maior volume de vendas. Quase nos querem fazer crer que sem prendas e sem embrulhos não somos amigos uns dos outros, ou, inversamente, que basta trocarmos embrulhos para sermos amigos. Quanto aos Valentines (pobres cartões!), valem o que valem, nos rituais da amizade e do amor.
Passou o Natal. Veio o 14 de Fevereiro, dia dos namorados. De novo a imprensa, a rádio, a televisão, agora a Internet, forneceram ideias sobre o que comprar, se calhar com uma tiragem especial da lotaria, para fins pios. Para as coisas serem mais a rigor, só faltaram versões especiais de algumas marcas de automóveis ou bombásticas e estridentes promoções de telemóveis. Porém, em termos de economia e finanças, os ventos não sopram a favor.
(É pena que as bombas e as minas continuem a rebentar e que os sentimentos de individualismo continuem a grassar dentro das pessoas).

Raízes Pagãs e Mitológicas
Há referências a antigas festas organizadas pelos Romanos a 15 de Fevereiro, em honra do deus Lupercus, e, por isso, chamadas Lupercais. Eram sacrificados cães e cabras, cujas peles eram utilizadas para açoitar as pessoas, em especial as mulheres, para curar a esterilidade. Teriam sido abolidas no ano 494 da nossa era.
Porém, tais festas teriam nas suas raízes um misto de mitológico e de pastoril, sendo primitivamente celebradas pelos pastores em honra dos Faunos, em que se pedia fertilidade para os campos de pastagem e para os rebanhos... e prosperidade para os próprios pastores.
Em algumas culturas, 14 de Fevereiro passou, então, a ser o dia de São Valentim, e a crença de que os próprios pássaros acasalariam neste dia ajudou à instituição do dia dos namorados.
A tradição de enviar cartões em forma de coração (os Valentines) aparece já referenciada em documentação da família Paston, no século XV, na zona de Norfolk, a sul de Inglaterra.
O Cristianismo terá assimilado alguns aspectos desta festa, aproveitando-a para lhe associar dois mártires romanos do século III, ambos com o nome de Valentim, procurando, porventura, cristianizá-la ou criar espaço para isso. 

São Valentim e São Gonçalo
Segundo o Dicionário de Santos (2), Valentim de Récia foi uma espécie de bispo itinerante. É padroeiro dos amorosos, dos namorados e dos epilépticos. Foi excluído do calendário litúrgico oficial pelo Papa Paulo VI, em 9 de Maio de 1969.
Mas a Igreja Católica não ficou descalça e ainda festeja dois outros santos com este nome, a 14 de Fevereiro. Ambos eram romanos, e terão vivido no século III. Um foi sacerdote, tendo sido decapitado por assumir a renúncia a Júpiter e a Neptuno, e por ter convertido uma família inteira à fé cristã; o outro foi bispo de Térni, na Úmbria, e teve sorte idêntica à do seu homónimo, por razões semelhantes. Ambos faziam curas, e, por isso e para a época, eram médicos.
Se a namoro ou enamoramento se pode associar casamento, não deveremos esquecer os santos da nossa cultura, nomeadamente Santo António de Lisboa e São Gonçalo de Amarante.
Santo António de Lisboa terá nascido por volta de 1191-1192, na nossa cidade, "situada nos confins da terra". Enquanto jovem seria acometido por violentas paixões, e ainda recentemente muitas eram as jovens que queriam ser Noivas de Santo António. 13 de Junho é o seu dia.
Curiosamente, no Brasil há uma grande simpatia por Santo António (de Lisboa ou de Pádua), onde muitos consideram 12 de Junho o dia dos namorados. Há diversos rituais curiosos para o santo garantir namorado ou namorada a quem lhe pede ajuda, e alguns estudiosos não hesitam em ver nestas práticas reminiscências de crenças e de rituais trazidos pelos negros vindos de África, na condição de escravos.
No que toca a São Gonçalo, registamos que em 1997 o Professor José Hermano Saraiva afirmava no Canal 2 da Televisão que ele não teria sido santo, mas sim um rico fidalgo de Amarante (D. Gonçalo) que pela sua nobreza e condição social apoiava e promovia alguns casamentos. Porém, também achamos escrito (Moderna Enciclopédia Universal do Círculo de Leitores, por exemplo) que se tratou de um beato Dominicano do século XIII, natural da zona de Guimarães, falecido em Amarante. Pároco em S. Paio de Vizela, andou pela Terra Santa, abraçou a vida eremítica, mas depois entrou para a Ordem dos Pregadores, tendo desenvolvido intensa actividade na implantação do Cristianismo nas terras de entre Douro e Minho. Foi beatificado em 16 de Setembro de 1561, e a sua memória celebra-se a 10 de Janeiro. A obra Santos de Cada Dia (3), I Volume, desenvolve mais em pormenor a vida e os atributos deste santo, que de facto reconhece ser oriundo da nobre família dos Pereiras, referida por José Hermano Saraiva.
                                                        
AMOR: ALGUNS PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS

                                                                              "O amor não tem necessidade de analistas, mas de poetas".
                       
Os fundamentos ontológicos, filosóficos e biológicos do amor deram pano para mangas ao longo dos tempos, conforme culturas, religiões, classes sociais, e o próprio desenvolvimento científico da humanidade. A palavra tem conhecido, aliás, sentidos mais ou menos abrangentes, confundindo-se e misturando-se muitas vezes – ou, mesmo, necessitando-se mutuamente – nas vertentes espirituais, sensuais e carnais.
Mas racionalizar o amor nunca foi tarefa fácil ou pacífica, não foram os muitos poetas e filósofos para quem o amor e a razão não se combinam, já que, como escreveu Luís de Camões é "... tão contrário a si o mesmo amor", havendo até a ideia de que o amor precisa de um dose loucura q.b. para se elevar e atingir a paixão.
Definir o amor é coisa que também não sabemos e não iremos tentar fazer, mas é notório que grandeza e fragilidade lhe são associados, mesmo que a grandeza provenha dos deuses ou do bem, e a fragilidade venha dos demónios, da tentação ou do mal. Mesmo que tudo isto resida na nossa humanidade frágil!
As antigas civilizações criaram deuses, entre eles do amor.
Na Grécia venerava-se Eros. Segundo a versão mais difundida, este seria filho de Afrodite e de Hermes. Segundo outra versão, esta divindade teria surgido do Ovo primordial, engendrado por Nix (a noite), donde surgiram também Urano (o Céu) e Gaia (a Terra). Neste último caso, "Eros é uma força preponderante na ordem do universo, responsável pela perenidade das espécies e pela harmonia do próprio Cosmos" (4). Mas Eros também poderia ser o deus alado dos escultores e dos poetas, neste caso filho de Hermes e de Artemis, dotado de poder irresistível, a quem se rendiam os mortais, os heróis e os outros deuses, todos sujeitos às suas flechas certeiras (e sabemos lá, nós, mortais, do seu eventual parentesco com os anjinhos dos católicos!).
Cupido, deus romano do amor, acabará por ser uma réplica de Eros, perante a decadência e a submissão da civilização grega.
Afrodite também aparece como deusa grega do amor e da fertilidade, envolvida numa grande teia de lendas, muitas vezes contraditórias, desde as diversas origens que lhe são atribuídas, até aos amores funestos ou bem sucedidos em que se teria envolvido. Na mitologia romana, Afrodite deu lugar a Vénus.
Os filósofos gregos não tardaram a dissertar sobre o amor e a teorizá-lo. Em campos mais ou menos opostos, estavam os Eleatas e os Epicuristas. Os Eleatas (de Eleia) são sobretudo Parménides e Zenão (sec. V a. C.), criadores do Estoicismo e, grosso modo, defensores da resistência às tentações e à dor, da renúncia ao prazer e aos bens materiais, apologistas da aceitação do sofrimento (quem não conhece palavras como estóico ou estoicismo?). Opostamente, os Epicuristas, fundam-se nas doutrinas de feição materialista de Epicuro, defendendo o uso equilibrado e harmónico do prazer, refúgio repousante das grandes aspirações humanas.
Nas palavras de Joaquim Ferreira (5), estas concepções opostas reflectem o princípio de que "ao frenesim sensual, que flameja e se conspurca na orgia dos sentidos, contrapõe-se o amor idealista, o amor do espírito, que prefere a virtude à lascívia". E aqui já estamos a tocar ao de leve aspectos da teoria platónica das ideias e da concepção platónica do amor, que viria a ter em Santo Agostinho (sec. V) o principal obreiro da recuperação e do aproveitamento dos conceitos platónicos para a igreja católica.
Platão e Santo Agostinho são símbolos, e representam princípios orientadores na Itália do Renascimento, quando o Humanismo surgiu como movimento filosófico, mas, sobretudo, artístico e literário. O soneto é a nova forma de literatura poética, e Petrarca ditará a regra, dedicando a Laura versos apaixonados de amor, do tal amor transcendente onde a luxúria não animaliza nem subverte a razão. Entre nós, à maneira de Petrarca mas sobretudo como homem do seu tempo, Luís de Camões viria a adoptar o soneto e a fazê-lo elemento inovador e decisivo na poesia portuguesa.
Mas, na sua eterna e inevitável relação com estas forças poderosas, os humanos hão-de tropeçar sempre na bestialidade da sua natureza, onde, inevitavelmente, factores biológicos ditam razões, nem que seja porque "a razão tem razões que a razão desconhece". O amor conheceu e socorreu-se, pois, de palavras complementares e subsidiárias como paixão, namoro, amizade, amante, amado, enamoramento, até à relação socialmente elaborada e instituída que é o casamento.
 
 




 

 

 O BANQUETE: SÓCRATES E PLATÃO
Uma obra fundamental da filosofia grega sobre o amor é justamente "O Banquete ou Do Amor", de Platão (6), estruturada e desenvolvida da forma que vamos tentar resumir.
Agatão dá um banquete e recebe vários convidados. Discute-se o amor. Ele próprio é um sofista, defendendo uma coisa e fazendo outra, pelo que hoje se arriscaria a ser apelidado de demagogo. Sócrates acabará, aliás, por chamá-lo à atenção pelos excessos. Os outros sustentam diferentes princípios e atitudes, pelo que merece a pena referir cada um dos convidados para o banquete onde se discute o amor, embora tudo isto deva situar-se na época, ou seja, há bem mais de dois mil anos.
Fedro é um jovem sofista, habituado a discussões e à defesa de lugares comuns. Por vezes, os companheiros acusam-no de falta de bom senso, mas sustenta que o amor pode ser uma virtude. Por isso, elogia Eros, "um deus antigo que não tem pai nem mãe", vindo depois do caos. "O amante está mais próximo dos deuses do que do amado, uma vez que se encontra possesso de um deus". Deus é amor!...
Pausânias é um epicurista. Para ele, deve ter-se em conta que existe mais que um Eros. Faz a apologia da sensualidade e defende o prazer, embora diga que devemos amar segundo as regras do belo.
Erixímaco é médico. A sua visão científica ou física das coisas leva-o a considerar o amor uma necessidade entendível e, como tal, irreversível.
Aristófanes é actor. Habituado ao teatro e às plateias, faz um discurso de belas e eloquentes palavras, com muita fantasia mitológica pelo meio. Chega ao ponto de afirmar que anteriormente não existiam apenas duas categorias de sexos, mas sim três: o masculino, o feminino e... o andrógino, que se extinguiu!
Alcibíades é político. Preocupado sobretudo com a imagem, recorre aos elogios a Sócrates como que para se elogiar a si próprio e para não ser atacado pelo mestre, nos seus pontos de vista mais ou menos frágeis.
Há, ainda, personagens acessórias, com funções essencialmente narrativas, como Apolodoro e Aristódemo. São também estas que, anos mais tarde, narram o que se passou e o que se discutiu no famoso Banquete em casa de Agatão, e que Platão levará à escrita.
Mas Sócrates é a clarividência da discussão, em substância, estilo e método. Presta mais atenção ao que não é dito do que ao que é dito. Recorrendo a processos dialécticos e à maiêutica procurará tornar evidente e clara a sua concepção transcendental do amor. Valoriza menos os aspectos materiais do que os espirituais, e a beleza é a elevação que diviniza o amor e o aproxima dos deuses. Crê no além, no antes e no depois, porque o ser humano sente e vive sobretudo reminiscências. A própria morte é a passagem para esse além, para o Hades, onde se recupera a harmonia perdida. Aparentemente, é por isso que aceita sem reservas a condenação à morte, por ingestão de cicuta, porque a alma é imortal (7). Se destruirmos uma viola ou uma guitarra, será que destruímos irremediavelmente o seu som, ou o seu som poderá continuar a residir noutro além, nem que seja fora do instrumento onde anteriormente a sua sonoridade residia? A alma é essa sonoridade espiritual, e o próprio amor atinge a espiritualidade pela transcendência e pelo desapego ao fugaz, ao instantantâneo e ao material.
Platão foi um discípulo de Sócrates. Discretamente tardio no tempo, mas não nas ideias. Apurou, assimilou e passou à escrita o que o mestre tinha dito e ensinado. Sendo, embora, filósofos idealistas ou, até, espiritualistas, o método e o apego a uma certa e concreta racionalidade fizeram deles os representantes de uma época e os teorizadores do que viria a seguir-se e a ser recuperado na Idade Média pelos doutores da igreja, em especial por Santo Agostinho, para quem Deus é a essência do amor. Em termos filosóficos, morais, religiosos e literários, ficou instalada a concepção do amor platónico, ainda que, porventura, em estado de certa letargia até ao Renascimento.

AMOR E LITERATURA

                                                "O amor é um pássaro verde, num campo azul, no alto da madrugada"
                                                                                                          Victor Barroca Moreira, Edições Itau

Tentada alguma abordagem histórica conceptual da matéria, procuraremos agora aspectos mais práticos da relação do homem com as forças da natureza, não tenham sido Adão e Eva os primeiros a comer o fruto proibido (?), ou o que Garcia de Resende teria chamado subtilmente o "doce fruito". Foi há muito, e não temos pormenores!
O assunto daria para dissertações teológicas, sociológicas e antropológicas, que nos levariam à análise das origens e dos diversos tipos de família (8). Mas iremos ficar-nos por aspectos mais simplistas da relação homem-mulher, que tão retratada continua a ser em manifestações artísticas, popularizadas ou intelectualizadas.
O amor era quase uma arte, ou uma coisa complicada. Os livros falam-nos do amor cortês, cujas regras exigiam habilidade e sapiência. A morte do amado ou da amada impunham, por exemplo, um luto nunca inferior a dois anos! Os cavaleiros da Idade Média empenhavam-se em acções de bem-fazer, para se tornarem merecedores da sua apaixonada. Tal aconteceu, por exemplo, com o nosso (?) Amadis de Gaula em relação a Oriana.
Enquanto trovador, o próprio rei D. Dinis parecia extremamente cuidadoso ao escrever Cantigas de Amor "en maneira de proençal", embora muitas vezes se distraísse, como acontece ao mais comum dos mortais. Também Paio Soares de Taveirós, nos tempos do Galaico-Português, revelou clara e idêntica preocupação ao ousar referir-se àquela que amava: "Queredes que vos retraya?". As próprias cantigas de amigo seriam escritas por homens, que versejavam como se fossem mulheres, para manter o recato que as regras impunham.
As coisas variavam e divergiam conforme as condições sociais, mas não há dúvida que nestes assuntos o segredo também já era a alma do negócio! Muito poucos saberiam ler e escrever, e da interioridade física e mental de cada um nunca deixaram de brotar instintos e sentimentos, pulsões e devaneios, deixando os mortais sujeitos a impulsos e a caprichos inexoráveis, próprios da sua condição e da sua natureza humana, divinizados ou não.
D. Pedro e Inês de Castro amaram-se até às últimas consequências. Na zona e nos tempos históricos de Aljubarrota criou-se a Ala dos Namorados. Clérigos e religiosas (Soror Mariana Alcoforado, por exemplo) foram frequentemente atingidos pelas setas certeiras e implacáveis de Cupido (ou de Eros). Amor e ausência combinam-se (sabe-se lá!?) para formar a saudade, tão cara aos poetas, de forma implícita ou explícita. João de Roiz Castelo Branco compõe a bonita cantiga Partindo-se:
                             
                                     "Senhora, partem tão tristes
                                      Meus olhos por vós, meu bem,
                                      Que nunca tão tristes vistes
                                      Outros nenhuns por ninguém...".

Sá de Miranda e Luís de Camões afirmam-se como expoentes nacionais da lírica renascentista. Surge D. Francisco Manuel de Melo com a "Carta de Guia de Casados", já que o amor "soe ser a principal causa de fazer os casados mal casados". Depois, fala-se de Cultismo e de Conceptismo, ou de Gongorismo. Seguem-se Bocage e a Marquesa de Alorna, e começamos a poder falar em Pré-Romantismo e em Romantismo, para passar a Ultra-Romantismo, como que dispondo, embora, as coisas em prateleiras.
O Romantismo é portador de um amor que é misto de pureza e voluptuosidade, porventura com a primeira a camuflar (ainda) a segunda. A mulher é o ídolo, sem meios termos: é a perda ou a salvação. Morre-se de amor, e os suicídios românticos quase são moda, lembrando Romeu e Julieta, na Verona de Capuletos e Montéquios, na linguagem de Shakespeare.
Se Almeida Garrett se apaixonou por um senhora casada (chamada Rosa), também Camilo se apaixonou por Ana Plácido, igualmente casada. O amor tende à fatalidade, é doce e cruel, pouco dado à razão... e longe vão ficando, de quando em vez, as concepções platónicas.
Camilo escreve Amor de Perdição e Amor de Salvação, ainda assim em linguagem muito rendilhada e cheia de pieguice, mas também carregada da intenção de denúncia que encontramos em A Freira no Subterrâneo. Denúncia, crítica e revolta, acrescente-se.
António Feliciano de Castilho pretende-se arauto e defensor do Romantismo, mas os exageros dos ultra-românticos hão-de começar a abalar o movimento, embora o tema permita abordagem muito mais alargada.
Umas palavras são devidas a Júlio Dinis (Joaquim Guilherme Gomes Coelho, de seu verdadeiro nome). Cultivou o romance campesino, uma espécie de transição ou de pausa na literatura. Quem não se lembra d'A Morgadinha dos Canaviais ou d'As Pupilas do Senhor Reitor, por exemplo? Aqui, as intrigas de amor acabam por ser como que purificadas, pois a compreensão, a tolerância e o perdão são qualidades e virtudes que filtram o amor, evitando os suicídios e os homicídios, particularmente frequentes em Camilo. A mulher é frágil, é certo, mas numa sociedade campesina dominada pelo homem de bem, sensato e tolerante, ela acabará sempre por ser uma boa esposa, uma boa dona de casa e uma boa mãe, segundo os padrões e os ditames da época. 
O Realismo surge como uma necessidade, uma resposta e uma consequência, pois os tempos tinham evoluído e muitas contradições se tinham acentuado. Da Europa, em particular da França, chegavam novas ideias e novos conceitos sociais, políticos e religiosos. Eça de Queirós, Antero de Quental, Teófilo Braga e outros estudantes de Coimbra acabaram por personificar a chamada Questão Coimbrã: o Romantismo moribundo e decadente, contra o Realismo nascente. Passe a expressão, assim se esgadanharam pela primeira vez as literaturas rivais de Lisboa e de Coimbra.
Mário Gonçalves Viana (9) escreveu que "Os portugueses resvalaram de um extremo ao outro. Da adoração integral e absoluta da mulher, passaram a vê-la tal qual ela era, ou tal qual a julgavam...". De facto, desapareceram as tradicionais heroinas românticas, e a venalidade da relação homem-mulher ficou mais escancarada. Sobretudo no romance, o amor assume-se e afirma-se com a cumplicidade mais ou menos própria da vida real. Em toda a extensão, as mulheres são mais intervenientes. A obra de Eça de Queirós é uma imensa galeria de quadros humanos, onde os próprios exageros deixarão de o ser, se considerados artifícios para criar a ironia e evidenciar traços psicológicos ou de carácter, com relações amorosas de que Carlos da Maia, Maria Eduarda, Basílio e Luisa são apenas exemplos.
Florbela Espanca merece-nos uma referência particular. Indefectível cultora do soneto e do amor, enfrenta corajosamente o mundo e a sociedade da época (início do século XX). Parece ter bebido a sua inspiração exactamente em mágoas de amor. Queria "amar, amar perdidamente...". Estudou Direito. Fez três casamentos, mas não consegiu encontrar ou construir a felicidade, se calhar por não lhe encontrar a imensidão dos desejos arquitectados nos seus sonhos. Morreu aos 36 anos!
Mas isto é uma abordagem breve, pois nos meios rurais e nas próprias cidades muitos não sabiam ler nem escrever, embora também amassem e sofressem à sua maneira. Ainda assim, os romancistas não os esqueceram, e terão sido sobretudo os (digamos) Neo-Realistas a retratá-los, de Alves Redol a Soeiro Pereira Gomes, passando por Ferreira de Castro, só por exemplo.
Igualmente bonita é a obra de poetas do amor como António Botto, Ary dos Santos, David Mourão Ferreira, Carlos Lopes Pires, Eugénio de Andrade, Natália Correia, Daniel Felipe, Joaquim Pessoa, e muitos outros. Manuel Alegre, também:

                                                 "... E foi meu leito de núpcias
                                                  Um chão de pedras e carqueja
                                                  (Porém com penas e rosas
                                                  No corpo da minha amada)."

Mas a literatura continua. Poderíamos falar de António Lobo Antunes e recordar páginas do Fado Alexandrino ou da Memória de Elefante, onde se respiram manhãs, e onde é permitido beber o sono das carnes esponjosas com pássaros de equinócio no pescoço. Também Agustina Bessa Luís escreveu páginas bonitas sobre o amor, embora esta opinião pessoal se refira a passagens de obras como Memórias Laurentinas, por exemplo (onde diz que os políticos amam pouco e mal). Ainda não há muito, a autora escreveu Party, levando-nos, nas suas palavras, à questão do "Conflito entre o Masculino e o Feminino" (10), com algo de comum com o banquete platónico, em casa de Agatão. Party destinou-se, aliás, a um filme homónimo (1996), dirigido por Manoel de Oliveira, numa produção franco-portuguesa. Também aqui se discute o amor!

CARTAS DE AMOR

                                                                                                   "Cartas de amor/ quem as não tem?..."
 
Há uns anos atrás, encontravam-se à venda no mercado pequenos livros de cartas de amor: com respostas e tudo. Era escolher, copiar, mandar entregar por correio ou por mão e esperar!
Seleccionamos e transcrevemos excertos de duas cartas (um pedido de namoro e uma resposta de aceitação):

"Ex.ma Srª
Quem me havia de dizer que, indo ao baile onde encontrei V. Exª, eu iria decidir da minha vida. Falta-me saber se hei-de abençoar ou maldizer a hora em que a distingui de entre tantas senhoras. O que sei de antemão é que, sendo ou não favorável a resposta de V. Exª, me sinto, desde já, o seu escravo, pronto a todos os sacrifícios e (quem sabe!) a todas as torturas que V. Exª me impuser.
Oxalá V. Exª se digne conceder-me um pouco de atenção, para refrigério da minha pobre alma, tão apaixonada e inquieta..."

Seleccionamos a seguinte resposta:

"Ex.mo Sr:
Muito embora receasse até hoje acreditar em protestos de amor, o coração abre uma excepção em favor de V, Exª, justamente porque a minha alma se sente atraída para si.
Essa atracção faz-me perder o domínio que sempre tenho tido sobre mim, evitando ir atrás de um primeiro impulso.
Escrevo-lhe não só para lhe dizer que aceito o seu amor, com também para lhe afirmar que é mais do que simpatia o que sinto por V. Exª...".

Estas cartas valem pelo que valem, mas foram moda. Estes livrinhos eram muito usados, e não sabemos para felicidade de quantos, fosse ela duradoura ou efémera. Seja como for, são documentos históricos. Lembremos Fernando Pessoa, que escreveu assim: 
                                          
                                                  "Todas as cartas de amor são
                                                  Ridículas.
                                                  Não seriam cartas de amor se não fossem
                                                  Ridículas.
                                                  (...)
                                                  Mas, afinal,
                                                  Só as criaturas que nunca escreveram
                                                 Cartas de amor
                                                 É que são
                                                 Ridículas..."
 
FRASES E PENSAMENTOS
Com sentido poético, religioso, filosófico, sentimental, ou físico, muitos pensamentos se encontram escritos em livros, em folhetos anónimos, mesmo em paredes, quando não circulando apenas de boca em boca. Patéticas, estoicistas ou epicuristas, são frases frias, nuas ou cruas, ou harmoniosamente buriladas, de que deixamos alguns exemplos para terminar este apontamento:
. "A vida sem ti é como um lápis partido. Não tem princípio nem fim". - Anónimo.

. "Amar é nunca ter que se pedir perdão". - Do filme Love Story, David Golden e Howard G. Minsky, 1970.

. "O adultério é a aplicação dos princípios democráticos do amor". - Anónimo.

. "Muitos homens amariam mais as suas esposas se elas estivessem casadas com outros homens" - Anatole France.

. "A natureza engana-nos! Seduz-nos com os encantos do amor apenas para conseguir os seus fins". - Schopenhauer.

. "Aprendi (...) que o amor era apenas uma suja cilada que a natureza nos pregava para assegurar a continuação da espécie". - Somerset Maugham, em Exame de Consciência.

. "Os olhos do espírito só começam a ver quando os do corpo se fecham". - Sócrates, em O Banquete.

. "O amor é como a graça de Deus: chega para toda a gente". - Anónimo.

. "O amor é o triunfo da imaginação sobre a inteligência". - Lanelos.

. "Quando não se pode ter aquilo que se ama, tem que se amar aquilo que se tem". - Anónimo

. "O amor é o milagre da civilização". - Stendhal, em Do Amor.

. "Quando ainda não existia nada, já existia o amor. Quando já nada mais existir, há-de existir o amor". - As Mil e Uma Noites, in Joaquim Pessoa, em À Mesa do Amor.

Manuel Paula Maça
manoel.maza@gmail.com
 
(1) War Crimes in Vietnam, tradução de Carlos Araújo, Brasília Editora, Porto.

(2) Jorge Campos Tavares, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1990.

(3) José Leite, S. J., 3ª Edição, Editorial A.O., Braga, 1991.

(4) Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Mário da Gama Kury, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990.

(5) Sonetos de Camões, 3ª Edição, (Prefácio da Obra), Colecção Portugal, Editorial Barreira, Porto.

(6) Existem várias edições da obra. Socorremo-nos da publicada pela Atlântida Editora em 1968, traduzida, prefaciada e anotada por Pinharanda Gomes.

(7) Leia-se o Fédon, de Platão, disponível em várias edições.

(8) Leiam-se os trabalhos de Morgan e Friedriesch Engels

(9) O Amor na Literatura Portuguesa, Domingos Barreira Editor, Porto.

(10) Jornal O Público, edição de 96.11.30.

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