segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O FADO DO FADO II





2 Sentimentalidade Vadia: Fado, Vinho e Navalhas



Temos, então, uma Lisboa com uma população flutuante, socialmente complexa e heterogénea, a todos os níveis. São as migrações internas, em particular dos meios rurais; são gentes oriundas da Galiza, sobretudo homens, sendo frequentes as alusões a galegos; mas é, principalmente, a pluralidade étnica e cultural que regular ou massivamente aporta do Brasil, cuja independência ocorre em 1823. Neste emaranhado de gentes, uma nota particular para a designação curiosa de "ovarinas", dada às mulheres provenientes de Ovar, que caminhariam descalças, de canastra à cabeça, lançando os seus pregões enquanto vendiam o pescado pelas ruas. Assim teriam surgido e ficado para a posteridade as típicas "varinas", que passariam a não ser apenas as (mulheres) de Ovar: "é varina, usa chinela", diz o fado.
Mas quais, como e quando se teriam misturado, os ingredientes de identificação e caracterização da "cantiga de viela", que viria a seduzir a própria nobreza, a ligar-se aos touros, a subir as escadarias dos salões, a instalar-se e a desenvolver-se (diferentemente, embora) em Coimbra, chegando aos nossos dias?
As tabernas e os prostíbulos iam alastrando, a par de uma vida dissoluta por parte de algumas franjas da sociedade lisboeta. Os instrumentos de corda dedilhada vinham conquistando adeptos dedicados desde o século XVII, em aliança com danças e cantigas, com respeitáveis navalhas ao lado ou na liga. Consta que, nas ruas, era costume os cegos tocarem viola ou guitarra enquanto lançavam pregões ou davam conta das ordens da polícia ou de outras disposições legais, a par de alguma poesia (ou literatura) de cordel, incluindo almanaques e orações para os mais pios e diversos fins. A crítica social e a devassa de muitas vidas privadas também serviam de tema, com frequentes variações e arranjos sem dó nem piedade em matéria de desacato e pancadaria. Tornaram-se usuais expressões como "bater o fado" e "canto a atirar", neste último caso sugerindo desgarrada ou desafio (6), onde viriam a destacar-se executantes exímias como a mãe de Maria Severa, a quem a pilosidade acentuada conferiu a alcunha de "Barbuda". E a Barbuda foi justamente a proprietária de uma das três tabernas que existiram na antiga Rua da Madragoa (6), que em 1863 passou a chamar-se Rua Vicente Borga, cuja designação ainda hoje se mantém. Ali se fez "escola"; ali, muitas vezes, Maria Severa cantou e bateu o fado, debatendo-se com credenciados praticantes da modalidade e afins, como Manozinho, Mesquita e Manuel Botas. As nossas fontes dão-nos conta de sessões que se arrastariam por dois ou três dias e noites.

Se o Padre Santo soubesse
O gosto que o fado tem,
Viera de Roma aqui
Bater o fado também.

Mas o "Padre Santo" não veio. Também não foi para "bater o fado" que em 30 de Novembro de 1807, sob o comando de Juntot, as tropas francesas entraram em Lisboa. Parece, porém, que os já referidos executantes ambulantes de viola e de guitarra (cegos, muitas vezes), passaram a incluir nos seus repertórios a divulgação das proclamações do governo, as cartas oficiais dos generais, as vitórias dos aliados e as derrotas dos invasores. Vozes sonoras acompanhadas de pinga continuavam, pois, a combinar com os acordes das violas e das guitarras, e talvez já seja perceptível uma espécie de fio condutor a ligar e envolver um conjunto de elementos.
É, ainda, Pinto de Carvalho que nos diz que em 1824 (um ano depois da independência do Brasil, note-se) a licenciosidade das cantigas destes guitarristas era tal que a polícia as achava "dignas de correctivo", por "indecentíssimas e obscenas" e com "trejeitos escandalosos". É particularmente visada a cantiga Negro Melro, de que seleccionamos duas quadras de evidente subtileza (7):

O ladrão do negro melro
Toda a noite assobiou,
Lá por essa madrugada
Bateu as asas, voou.

O ladrão do negro melro
Onde foi fazer o ninho!
Lá p'rós lados de Leiria
No mais alto pinheirinho.

A bibliografia disponível deixa ora lacunas, ora prudentes reservas em torno da evolução coreográfica e musical de géneros anteriores ao fado, com ele coincidentes ou nele incorporados. Nas ruas e tabernas, imperavam a fofa, o oitavado, as cheganças, o fandango e o lundu, normalmente acompanhadas por instrumentos de cordas e dançadas com o atrevido frenesim sensual da umbigada, de que poderão ter ficado reminiscências no bolero espanhol. Diversos autores registam traços comuns entre géneros musicais de origem afro-brasileira, com alguma expressão na Andaluzia espanhola, de que são exemplo a seguidilla e o "Fandango de Sevilha". Este, segundo um folheto que na época circulou em Lisboa, era "mesinha especial para divertir melancólicos" (8). O mesmo documento refere-se à Fofa como "som do Brasil com propriedade para vodas e galhofas". Por influência da Igreja Católica, o Rei D. José teria proibido as cheganças, como se depreende da quadra que ficou:


Já se não cantam cheganças,
Que não quer o nosso rei,
Porque lhe diz Frei Gaspar
Que é coisa contra a lei.

Provavelmente, houve aqui mãozinha de Frei Gaspar da Encarnação, a quem Camilo Castelo Branco, respeitosamente, chamou "uma santa besta".
Poderemos, finalmente, questionar-nos sobre o Lundu (ou Lundum). Em 1791 esteve em Lisboa um famoso tocador de viola chamado Angelo Talassi, acolhido pela melhor roda, exímio e credenciado executante de lundus e de modinhas. Pouco depois notabilizava-se Francisco Vidal Negreiros, com idênticos atributos e méritos na matéria (7). Fica já o registo opinativo segundo o qual "modinha e lundu combinam-se provavelmente, no complexo de antecedentes directos do fado, designação mais generalizada da cantiga de viela a partir de meados do século XIX" (5), pois a ambos os géneros é atribuída génese afro-brasileira.
José Ramos Tinhorão (8) também situa no Brasil de finais do século XVIII o aparecimento da dança do fado, como fusão dos já referidos géneros que recorriam aos movimentos coreográficos da umbigada, nomeadamente a fofa, o fandango e o lundu. Não obstante as preocupações de autoridades militares e religiosas, o lundu acabaria por resistir e passar do Brasil para Lisboa, apesar do rótulo de "diabólico folguedo". De algum modo, e de ambos os lados do Atlântico, a própria população branca se teria apropriado das "danças de negros", pois a promiscuidade social favorecia um certo enriquecimento cultural no campo das diversões, uma vez mais por intercâmbio e assimilação de costumes.
Em 1821 D. João VI e a sua corte abandonam o Brasil e regressam a Lisboa. Vêm milhares de nobres e funcionários, com seus criados ou serviçais, muitos destes de origem africana. Em 1823 ocorre a independência.
Em 1840 Lisboa teria à volta de 155.000 habitantes, e aquando do censo de 1864 este número estaria nos 190.000. Porém, estes números têm uma importância relativa e não deverão ser olhados com rigor, pois muita gente não estaria recenseada ou apenas temporariamente viveria em Lisboa, fazendo parte da tal "população flutuante".
Aparentemente, é também após meados do século XIX que o fado entra numa nova fase: mais definida, aristocrática e literária ou letrada, por assim dizer. E é pelas mãos da nobreza que entra nos salões e conquista lugar nas suas festas e nas esperas de touros.

(continua)


Manuel Paula Maça

manoel.maza@gmail.com


(5) História da Música - Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro, Colecção Sínteses da Cultura Portuguesa, 1991, Imprensa Nacional - Casa da Moeda.
(6) História do Fado, Pinto de Carvalho (1903), Publicações D. Quixote, 1982.
(7) Encontramos a cantiga O Melro no repertório do grupo Sons do Lena, da Batalha, gravado em C D. É uma recolha popular, com uma letra atrevida que se enquadra.
(8) Fado - Dança do Brasil, Cantar de Lisboa - O Fim de um Mito, José Ramos Tinhorão, Editorial Caminho, 1994.




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