terça-feira, 5 de maio de 2009

Gripe AH1N1 e a Pneumónica - Aspectos Históricos

A GRIPE AH1N1

Uns chamam-lhe a “Gripe Suína”, enquanto judeus e muçulmanos preferem chamar-lhe “Gripe Mexicana”. Os técnicos e os cientistas têm optado por “Gripe AH1N1”, recorrendo à designação do vírus.
Os hotéis registam baixas nas taxas de ocupação; as companhias aéreas e os destinos turísticos também vêem os seus indicadores afectados e, de, um modo ou de outro, o mundo evidencia sinais de nervosismo e preocupação, já que o céu e o além podem esperar. Ao mesmo tempo, a indústria farmacêutica e de material clínico e de protecção vai tentando manter ou recuperar o equilíbrio das suas contas, assinaláveis que são, de facto, os progressos técnicos e científicos nestes domínios.
Numa abordagem que pretendemos histórica, também nos parece que a atenção e os cuidados não farão mal a ninguém, e manipulação genética de vírus é coisa de que não sabemos falar, embora muitas sejam as abordagens que temos ouvido em ambiente hospitalar, por razões profissionais.
De facto, a história regista epidemias terríveis e devastadoras, com destaque para a “peste negra”, não esquecendo o tifo, a cólera ou a febre-amarela. A “pneumónica”, ou “gripe espanhola” teria dizimado mais de 60.000 pessoas em Portugal, em 1918.
No que ao concelho de Abrantes se refere, encontramos um registo deixado por Eduardo Campos, segundo o qual teriam morrido (no concelho) mais de 100 pessoas, principalmente nas zonas rurais, em consequência da gripe espanhola ou pneumónica. E o nosso saudoso autor acrescenta: “Por este facto são proibidas a realização de feiras, mercados e espectáculos públicos e mobilizados todos os automóveis e carruagens de aluguer e particulares para assistência médica” (1).
A medicina evoluiu nos planos preventivo e curativo, e não iremos alimentar cenários catastróficos. Aproveitaremos, antes, a oportunidade para inserir neste espaço um trabalho histórico que em tempos elaboramos a propósito da pneumónica.
Entretanto, mantenhamos a calma e estejamos atentos aos conselhos dos técnicos de saúde.


A PNEUMÓNICA 1918– ASPECTOS HISTÓRICOS

"Aqui não se sabe de nada, aqui não chega nada. Nunca! Nem a pneumónica aqui chegou!"
Assim se exprimiu o faroleiro das Berlengas em 1919, quando Raul Brandão lá foi recolher elementos para a obra "Pescadores", que seria editada em 1923. O isolamento era a forma mais eficaz de escapar à doença.
Os registos, dispersos e imprecisos, deixam uma ideia da forma inesperada, fulminante e “eficaz” com que em 1918 a (também) chamada gripe espanhola devastou o país, estimando-se que em Portugal Continental tenham morrido mais de 60 mil pessoas, segundo estudos recentes. Entre os que eram atingidos mas logravam escapar, acamados por longos períodos, ainda havia quem ironizasse com expressões do género estar "na cama com a espanhola".
Pese a imprecisão das estatísticas, a pneumónica terá ceifado de 20 a 40 milhões de vidas em todo o mundo, no espaço de poucos meses.
Talvez que o problema não tenha sido suficientemente tratado pelos historiadores da época, sem esquecer a investigação científica que só mais tarde viria a fazer-se. A nível mundial, a Revolução Russa suscitava perplexidades; havia que preparar o rescaldo da I Grande Guerra, apesar dos milhares de mortes que a gripe começou por provocar nos campos de batalha na Primavera de 1918; em Portugal acresciam complexos problemas internos, como o assassinato de Sidónio Pais; as aparições da Cova da Iria também suscitavam interesse crescente, mas nem a virtuosa Senhora evitou o comunismo, nem poupou os pastorinhos Francisco e Jacinta aos desígnios da pneumónica.

As grandes epidemias
Num momento em que pelo mundo fora (Portugal incluído), é crescente o receio de uma pandemia provocada pela chamada gripe das aves, os governantes, a indústria farmacêutica e os técnicos de saúde arregaçam as mangas e esboçam planos de acção.
A peste é a mais antiga pandemia de que encontramos profusão de registos (nem sempre coincidentes, embora). Só no século XIV poderia ter devastado perto de metade da população, desde a Mongólia até ao extremo da Europa. O alcance da medicina era irrelevante; famílias e povoações inteiras eram dizimadas; os doentes agonizavam abandonados à sua sorte; filhos abandonavam pais, homens abandonavam mulheres; os cadáveres amontoavam-se, os doentes agonizavam; quem arriscasse chegar-se aos moribundos ou mortos sabia o que esperar a seguir. Cada um tentava escapar. O próprio papa Clemente VI, em Avignon, revelou receio e pouca devoção. Não obstante ter médico pessoal e queimar toneladas de azeite para criar cortinas de fumo à volta do palácio, optou por abandonar a cidade até as coisas acalmarem.
Em 412 a. C., segundo Hipócrates (2) poderá ter ocorrido "um surto de infecção catarral" no Norte da Grécia. Outros autores (3) referem-se a uma epidemia no norte de Atenas, em 431 a. C., cuja descrição deixa a hipótese de um surto de gripe. Outras descrições vão surgindo, com destaque para a grande pandemia de 1530, deixando a ideia de que a partir daí os grandes surtos de gripe foram desaparecendo da Europa Ocidental, entre meados e finais do século XIX. Voltariam, porém.
Em 1857 Lisboa foi atingida por um surto de febre-amarela, que teria contagiado 16 a 17 mil pessoas (cerca de10% da população local), fazendo 5 mil mortos. No Outono de 1723, outra epidemia teria provocado mais de 6 mil mortos, também em Lisboa, "sendo principalmente dizimadas as ruas e bairros menos asseados" (4).
A febre tifóide e o tifo também apareciam em surtos, embora começando a regredir a partir de 1865.
As febres intermitentes ou sezões, normalmente associadas ao paludismo, atingiram até meados do século XX as bacias hidrográficas onde se cultivava o arroz. Embora menos mortíferas, afectavam significativamente as populações e os trabalhadores sazonais (5).
A temível varíola teria feito a sua aparição em Portugal no século XV, mas ainda fez numerosas vítimas no século XX (6).
Um surto tardio de peste bubónica também fez sérios danos em 1889, em particular no Porto. O bacteriologista Dr. Câmara Pestana foi uma das vítimas mortais.
Em 1889 inicia-se na Sibéria uma nova pandemia de gripe, que varre a Europa. 15% a 70% da população poderá ter sido afectada, com grande variação percentual, conforme as zonas e os grupos etários. Há quem admita que os que resistiram a esta gripe poderiam ter ficado com as resistências acrescidas e constituído, por essa razão, o grupo etário menos atingido pela pneumónica em 1918.
As gripes asiática (1957) e de Hong Kong (1968) teriam provocado 4 milhões e 2 milhões de mortos, respectivamente, em todo o mundo.
Com maiores ou menores taxas de mortalidade, estas (e outras) epidemias tinham sempre terríveis implicações económicas e sociais, em contextos de pobreza e de miséria, onde o sustento das grandes franjas da população dependia dos proventos da força do trabalho.
Sem pretendermos entrar no mundo da ciência, sempre diremos que há quem sustente que cada novo surto de gripe resultava de alterações do vírus precedente. Corremos o mesmo risco, quando se fala na gripe das aves?

A Gripe de 1918: “Epidemia que Zomba da Medicina”
O tema em título e tratamento ocorreu-nos com a publicação de um livro do Prof. Doutor João Frada, com quem tivemos o privilégio do contacto pessoal anos atrás, quando iniciava a preparação do excelente trabalho ora publicado (7). Sim, porque parece que Leiria foi o segundo distrito onde a pneumónica provocou maior taxa de mortalidade, em Portugal Continental: 3.175 e 978 óbitos, no distrito e no concelho, respectivamente (1,08% e 1,81%), com especial incidência no grupo etário dos 30 aos 39 anos.
Na Primavera de 1918, em França, em pleno teatro de guerra, milhares de militares começaram a ficar doentes; de início recuperavam em pouco tempo, e começou por se falar, com ligeireza, na “febre dos três dias”. Mas as coisas agravaram-se, e nos meses de Verão uma grande percentagem dos infectados morria em 24 horas ou após longa agonia. Era uma espécie de segunda vaga da doença, mais grave que a anterior. Os franceses falavam em “gripe espanhola”, e os espanhóis em “gripe francesa”.
Estudo recente sugere que o vírus poderia ter sido trazido do estado do Kansas para a frente Oeste dos campos de batalha pelos militares do Corpo Expedicionário Americano (8), anteriormente contaminados por animais de explorações pecuárias. Nos EUA, aliás, depois da pandemia a esperança média de vida à nascença viria a sofrer uma redução de 10 anos. O estudo de cadáveres localizados e exumados nos campos gelados do norte da Europa poderão contribuir para melhor compreensão do que aconteceu, neste caso a nível técnico e científico.
A doença atingiu gravemente os militares alemães e estendeu-se à população civil, esta com 400 mil mortos estimados. No Reino Unido os primeiros casos teriam surgido em Glasgow, na Escócia, e em pouco tempo todo o mundo estaria afectado pela pandemia. Consta que só na Índia teriam morrido 16 milhões de pessoas, entre Junho de 1918 e Julho de 1919 (7). É um número de mortos superior aos ocorridos em consequência directa da guerra!
Com o armistício, os sobreviventes são enviados de volta aos seus países, às suas terras, às suas casas. Mais tarde se perceberia que nos comboios e nos navios superlotados viajava, também o vírus, que deste modo se espalharia facilmente.
Pelo mundo fora são diversas as medidas para combater o vírus e evitar o contágio, desde o uso de máscaras a recomendações precisas de medidas de higiene, que nalguns casos passavam pela pulverização de espaços públicos com produtos químicos. No Reino Unido chegou a fomentar-se o uso do tabaco em algumas fábricas, com a ideia (errada) de que o fumo poderia combater o vírus. Medida mais ou menos generalizada foi o combate aos ajuntamentos de pessoas.
No que toca a Portugal, há a ideia de que o vírus passou a fronteira espanhola, sobretudo com o regresso a casa dos trabalhadores sazonais alentejanos, a par das ligações de comboio de Madrid para Lisboa ou Porto, e das peregrinações religiosas. O pânico é geral, e a situação agrava-se com a licença precipitada e imprudente de regresso de muitos soldados às suas casas. Muitas ruas são lavadas com cal; são retiradas de circulação as notas de tostão, pensando conter o contágio (9).
Em Outubro de 1918, a Direcção-Geral de Saúde promove uma série de medidas profiláticas, desde hospitais improvisados ao recrutamento de estudantes de medicina, passando pelo reforço do abastecimento de farmácias, pela mobilização de médicos reformados e pelo controlo das migrações internas. Anula-se a abertura das aulas, proíbem-se as visitas aos hospitais. Curiosamente, mantiveram-se em funcionamento salas de espectáculo, termas e estâncias balneares; continuaram a celebrar-se missas. Editais como o que reproduzimos proibiam ajuntamentos de pessoas, as grandes feiras e romarias.
Neste contexto, os jornais falam de um “epidemia que zomba da medicina”, pois nem médicos nem enfermeiros estão livres.
Com a morte banalizada, as oportunidades de negócio também não eram desperdiçadas. Para além da promoção de produtos milagrosos, os Armazéns Grandela ofereciam 10% de desconto na compra de vestuário para luto, e a Casa Áurea aconselhava e vendia casacos de lã para evitar a gripe!
Em 1918, Portugal tinha 5,5 milhões de habitantes, A crise demográfica provocada pela pneumónica é evidenciada por um saldo fisiológico negativo, nesse ano, em que a própria nupcialidade diminuíu. Só em 1920 o ritmo normal de crescimento voltará.
Com tudo isto, virá por aí, um destes dias, uma nova mutação de um vírus impiedoso? A “Gripe das aves” poderá chegar aos humanos? Bem, são questões técnicas, e o lugar da história só mais tarde virá.

Manuel Paula Maça manoel.maza@gmail.com




Edital de 3 de Outubro de 1918, subscrito pelo Governador Civil de Leiria, Agostinho da Conceição Pereira, proibindo grandes ajuntamentos, grandes feiras e romarias.
(Cedido por Carlos Fernandes)










(1) Cronologia de Abrantes no Século XX, Câmara Municipal de Abrantes, 2000.
(2) Livro IV das Epidemias, in Medicina Interna, Volume 8, n.º 1, 2001.
(3) Tucidide e Gina Kolata, in Medicina Interna, Volume 8, n.º 1, 2001.
(4) História da Medicina em Portugal - Doutrinas e Instituições, Dr. Maximiano Lemos, 1899.
(5) Tema muito bem abordado por Alves Redol, no romance "Gaibéus".
(6) Textos sobre Saúde e Trabalho, Luís Graça, Escola Nacional de Saúde Pública.
(7) A Pneumónica de 1918 em Portugal Continental - Estudo Socioeconómico e Epidemiológico com Particular Análise do Concelho de Leiria, Lisboa, 2005.
(8) The Great Influenza - The Epic Story of the 1918 Pandemic, John M. Barry, 2005.
(9) A Morte Anunciada, Luís Trindade, in Revista História, Novembro de 1998.

Etiquetas: