SOUTO, ABRANTES: UM OLHAR
A Ermida de Nossa Senhora do Tojo
Quiseram desígnios a que sou naturalmente alheio que meu saudoso pai tivesse nascido no lugar de Ribeira da Brunheta, Freguesia do Souto, corria o ano de 1925. Esta circunstância, aliada à educação que tive e ao carinho que naturalmente me merecem as questões ligadas à minha terra, à minha família e aos meus amigos, justificarão estas linhas, face à curiosidade e ao interesse que arrasto desde os tempos da adolescência.
O Sr. Manuel António (da Ribeira da Brunheta) e eu próprio algumas vezes deixamos nas páginas do jornal “A Gazeta do Tejo” as referências possíveis ao lugar e à capela de Nossa Senhora do Tojo. Sobretudo para que não se perdessem, pela parte que me toca. Outros amigos têm dedicado atenção, interesse e carinho ao local e à ermida, recentemente sujeita a obras de restauro e conservação. Assim, esta nota será apenas mais que um pequeno contributo, modesto e insuficiente na abordagem da matéria.
Recordo as caminhadas a pé, em grupo, a partir da Carreira do Mato, nos dias de festa, cabendo às mulheres levar à cabeça o cabaz ou o cesto de verga com o repasto para o aconchego do estômago. O regresso era pelos mesmos caminhos, pela noite adiante, algumas vezes com os homens denunciando estômagos demasiado ou erradamente aconchegados, já que quanto às almas a Senhora estendia a mão protectora.
À semelhança de outras pessoas, o meu pai integrou a procissão no primeiro Domingo de Agosto, anos a fio, com uma vela enorme, em cumprimento de uma promessa feita numa fase difícil da vida em que achava que a Senhora o tinha amparado. Outros ofereciam os seus objectos e adornos mais valiosos, nomeadamente em ouro, e sabe-se lá o destino que tiveram! Também me lembro de como seguiam as festividades, com filarmónicas, bandas de música, cantares e animação, num misto de religioso e de profano.
Recordo, como tal, os conterrâneos e amigos com quem outrora ali me juntava, enquanto a adolescência se esfumava com o tempo, quando tudo parecia certo, nesse espaço onde, afinal, tradição, fé, convívio e solidariedade coincidiam ou habitavam lado a lado, em respeito, entendimento, concórdia e harmonia.
"Ficou hum tojo muy verde sem se queymar..."
Diz a lenda que umas crianças que guardavam um rebanho encontraram dentro de um tojo uma bonita imagem de uma santa. Recolheram-na e levaram-na para casa, mas desapareceu. Voltando ao tojo tornaram a encontrá-la e a levá-la, mas desapareceu de novo. O fenómeno repetiu-se, e teria acabado por levar à edificação da Ermida da Nossa Senhora do Tojo, em data que se desconhece.
Pegando na tradição e na lenda, António Carvalho da Costa (1) escreveu que "pondo-se fogo a hum mato no sítio, em que hoje está a Ermida, ficou hum tojo muy verde sem se queymar, & reparando nelle hum Pastorinho, achou dentro huma imagem pequena, & metendo-a no capello do gabão, sem saber o que levava, indo para casa, a não achou...". Diz ainda este autor tratar-se de "imagem milagrosa & de grande concurso de Romeyros".
Também a este propósito, Pinho Leal (2) escreveu que "É antiquíssima e não se sabe quando ou por quem foi fundada. É um templo pequeno, mas bonito, com alpendres aos lados, e casas para acolheita de romeiros (...) A sua festa principal é no segundo Domingo de Outubro".
Eram atribuídas propriedades medicinais às águas da fonte que ficava ao lado da ermida, e a elas se referiu o Dr. Francisco da Fonseca Henriques (3), em 1726, esclarecendo também Carvalho da Costa (1) que a vêm "buscar de muyto longe para os doentes, & dizem os moradores que havendo algumas differenças sobre ella, logo a fonte se seca".
O Souto e as Memórias Paroquiais: "Consta a dita freguezia de trinta e dous lugares..."
Possivelmente datada de 1758, a resposta ao inquérito integrado nas Memórias Paroquiais do Padre Luís Cardoso é subscrita pelo Cura do Souto, Padre João Manuel.
É dito que pertence ao Bispado da Guarda e que o Orago é São Silvestre, tendo a Igreja Paroquial cinco altares e várias imagens: São Silvestre, Nossa Senhora da Piedade, a Trindade, São Brás, São Pedro, São Bartolomeu, Nossa Senhora do Rozário e Cristo Crucificado. Terá sido concluída em 1740, depois da demolição da antiga, que estaria incapaz e distante.
A freguesia era composta por 32 lugares, muitos dos quais foram integrados nas freguesias de Carvalhal e Fontes. Teria 312 fogos, 868 pessoas maiores, 156 menores e 300 inocentes.
Não surpreende a referência a "humas estalagens que ficam na estrada da Beira", junto das quais existiria a Ermida de São Domingues. De facto, em tempos constatamos que da antiga vila de Punhete (chamada Constância, a partir de 1836) viria a estrada da Beira, a qual, passando junto à Medroa, seguiria por São Domingues.
As referências ao Rio Zêzere confirmam tratar-se de um rio caudaloso, que não era navegável, excepto para umas embarcações muito pequenas compostas por 3 tábuas, por certo à semelhança do que ainda encontramos na região de Martinchel.
São ainda referidos os produtos agrícolas da zona, destacando-se os cereais, as cerejas e as uvas labruscas.
O terramoto de 1755 terá provocado alguns estragos, tendo sido necessário reparar as Ermidas de Santo António e a da Nossa Senhora do Tojo. Terão escapado outras Ermidas existentes, que seriam a de São Domingues (já referida) e a de Santa Águeda, esta em Maxial do Meio.
Do resto da descrição desta Memória consta uma curiosa referência aos "cazeiros do Hospital de Sam Joam de Malta que gozam do privilégio da dita religiam".
“A Aldeia mais Portuguesa de Portugal”
Em sessão de 25 de Abril de 1938, da Câmara Municipal de Abrantes, o vereador da cultura e do turismo informou ter indicado à Junta da Província do Ribatejo (4) a Aldeia do Souto para o Concurso "A Aldeia mais Portuguesa de Portugal".
Este vereador apontava o forçado isolamento do Souto e das suas gentes, que teriam "oferecido maior resistência a quaisquer influências estranhas, conservando ainda a pureza das suas características, em referência à habitação, trajos, meios de transporte e artes populares".
A Câmara terá decidido assumir a proposta!
Os dados de que dispomos indicam que o Souto já seria sede de Freguesia em 21 de Outubro de 1629!
Manuel Paula Maça
(1) Coreografia Portuguesa.
(2) Portugal Antigo e Moderno, 1816-1874.
(3) Aquilégio Medicinal, 1726. Edição fac-similada de 1998, Instituto Geológico e Mineiro.
(4) O texto refere-se à Junta Provincial do Ribatejo. A Constituição em vigor entre 1933 e 1959 previa a divisão administrativa do território em províncias / regiões.
Quiseram desígnios a que sou naturalmente alheio que meu saudoso pai tivesse nascido no lugar de Ribeira da Brunheta, Freguesia do Souto, corria o ano de 1925. Esta circunstância, aliada à educação que tive e ao carinho que naturalmente me merecem as questões ligadas à minha terra, à minha família e aos meus amigos, justificarão estas linhas, face à curiosidade e ao interesse que arrasto desde os tempos da adolescência.
O Sr. Manuel António (da Ribeira da Brunheta) e eu próprio algumas vezes deixamos nas páginas do jornal “A Gazeta do Tejo” as referências possíveis ao lugar e à capela de Nossa Senhora do Tojo. Sobretudo para que não se perdessem, pela parte que me toca. Outros amigos têm dedicado atenção, interesse e carinho ao local e à ermida, recentemente sujeita a obras de restauro e conservação. Assim, esta nota será apenas mais que um pequeno contributo, modesto e insuficiente na abordagem da matéria.
Recordo as caminhadas a pé, em grupo, a partir da Carreira do Mato, nos dias de festa, cabendo às mulheres levar à cabeça o cabaz ou o cesto de verga com o repasto para o aconchego do estômago. O regresso era pelos mesmos caminhos, pela noite adiante, algumas vezes com os homens denunciando estômagos demasiado ou erradamente aconchegados, já que quanto às almas a Senhora estendia a mão protectora.
À semelhança de outras pessoas, o meu pai integrou a procissão no primeiro Domingo de Agosto, anos a fio, com uma vela enorme, em cumprimento de uma promessa feita numa fase difícil da vida em que achava que a Senhora o tinha amparado. Outros ofereciam os seus objectos e adornos mais valiosos, nomeadamente em ouro, e sabe-se lá o destino que tiveram! Também me lembro de como seguiam as festividades, com filarmónicas, bandas de música, cantares e animação, num misto de religioso e de profano.
Recordo, como tal, os conterrâneos e amigos com quem outrora ali me juntava, enquanto a adolescência se esfumava com o tempo, quando tudo parecia certo, nesse espaço onde, afinal, tradição, fé, convívio e solidariedade coincidiam ou habitavam lado a lado, em respeito, entendimento, concórdia e harmonia.
"Ficou hum tojo muy verde sem se queymar..."
Diz a lenda que umas crianças que guardavam um rebanho encontraram dentro de um tojo uma bonita imagem de uma santa. Recolheram-na e levaram-na para casa, mas desapareceu. Voltando ao tojo tornaram a encontrá-la e a levá-la, mas desapareceu de novo. O fenómeno repetiu-se, e teria acabado por levar à edificação da Ermida da Nossa Senhora do Tojo, em data que se desconhece.
Pegando na tradição e na lenda, António Carvalho da Costa (1) escreveu que "pondo-se fogo a hum mato no sítio, em que hoje está a Ermida, ficou hum tojo muy verde sem se queymar, & reparando nelle hum Pastorinho, achou dentro huma imagem pequena, & metendo-a no capello do gabão, sem saber o que levava, indo para casa, a não achou...". Diz ainda este autor tratar-se de "imagem milagrosa & de grande concurso de Romeyros".
Também a este propósito, Pinho Leal (2) escreveu que "É antiquíssima e não se sabe quando ou por quem foi fundada. É um templo pequeno, mas bonito, com alpendres aos lados, e casas para acolheita de romeiros (...) A sua festa principal é no segundo Domingo de Outubro".
Eram atribuídas propriedades medicinais às águas da fonte que ficava ao lado da ermida, e a elas se referiu o Dr. Francisco da Fonseca Henriques (3), em 1726, esclarecendo também Carvalho da Costa (1) que a vêm "buscar de muyto longe para os doentes, & dizem os moradores que havendo algumas differenças sobre ella, logo a fonte se seca".
O Souto e as Memórias Paroquiais: "Consta a dita freguezia de trinta e dous lugares..."
Possivelmente datada de 1758, a resposta ao inquérito integrado nas Memórias Paroquiais do Padre Luís Cardoso é subscrita pelo Cura do Souto, Padre João Manuel.
É dito que pertence ao Bispado da Guarda e que o Orago é São Silvestre, tendo a Igreja Paroquial cinco altares e várias imagens: São Silvestre, Nossa Senhora da Piedade, a Trindade, São Brás, São Pedro, São Bartolomeu, Nossa Senhora do Rozário e Cristo Crucificado. Terá sido concluída em 1740, depois da demolição da antiga, que estaria incapaz e distante.
A freguesia era composta por 32 lugares, muitos dos quais foram integrados nas freguesias de Carvalhal e Fontes. Teria 312 fogos, 868 pessoas maiores, 156 menores e 300 inocentes.
Não surpreende a referência a "humas estalagens que ficam na estrada da Beira", junto das quais existiria a Ermida de São Domingues. De facto, em tempos constatamos que da antiga vila de Punhete (chamada Constância, a partir de 1836) viria a estrada da Beira, a qual, passando junto à Medroa, seguiria por São Domingues.
As referências ao Rio Zêzere confirmam tratar-se de um rio caudaloso, que não era navegável, excepto para umas embarcações muito pequenas compostas por 3 tábuas, por certo à semelhança do que ainda encontramos na região de Martinchel.
São ainda referidos os produtos agrícolas da zona, destacando-se os cereais, as cerejas e as uvas labruscas.
O terramoto de 1755 terá provocado alguns estragos, tendo sido necessário reparar as Ermidas de Santo António e a da Nossa Senhora do Tojo. Terão escapado outras Ermidas existentes, que seriam a de São Domingues (já referida) e a de Santa Águeda, esta em Maxial do Meio.
Do resto da descrição desta Memória consta uma curiosa referência aos "cazeiros do Hospital de Sam Joam de Malta que gozam do privilégio da dita religiam".
“A Aldeia mais Portuguesa de Portugal”
Em sessão de 25 de Abril de 1938, da Câmara Municipal de Abrantes, o vereador da cultura e do turismo informou ter indicado à Junta da Província do Ribatejo (4) a Aldeia do Souto para o Concurso "A Aldeia mais Portuguesa de Portugal".
Este vereador apontava o forçado isolamento do Souto e das suas gentes, que teriam "oferecido maior resistência a quaisquer influências estranhas, conservando ainda a pureza das suas características, em referência à habitação, trajos, meios de transporte e artes populares".
A Câmara terá decidido assumir a proposta!
Os dados de que dispomos indicam que o Souto já seria sede de Freguesia em 21 de Outubro de 1629!
Manuel Paula Maça
(1) Coreografia Portuguesa.
(2) Portugal Antigo e Moderno, 1816-1874.
(3) Aquilégio Medicinal, 1726. Edição fac-similada de 1998, Instituto Geológico e Mineiro.
(4) O texto refere-se à Junta Provincial do Ribatejo. A Constituição em vigor entre 1933 e 1959 previa a divisão administrativa do território em províncias / regiões.
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