terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O FADO DO FADO III

Fado: Cantiga Social e Estranhas Formas de Vida







Chorai, fadistas, chorai,
Que a Severa já morreu!
Foi o que Vimioso ouviu
Uma manhã, quando s'ergueu.

Por fado ou sina, coube à fadista Maria Severa Onofriana papel determinante no processo de relacionamento entre a baixa sociedade lisboeta e a nobreza e a burguesia. Esta "meio-soprano do conservatório do vício" notabilizou-se por ser uma mulher bonita, que batia, atirava e cantava o fado; empinava uns copázios de tinto, para matar tristezas; fumava o seu cigarro, não sabemos se em público, pois não seria vulgar nas mulheres da época; tinha os seus amores mais ou menos recatados ou escandalosos, complexos e atribulados.
Pinto de Carvalho diz que em 1850 já não era viva. Porém, actualmente tornou-se corrente a indicação de que nasceu em 1820 e que faleceu a 30 de Novembro de 1846. Teria expirado numa enfermaria de hospital, com tuberculose, embora a tradição atribua a sua morte a "uma indigestão de borrachos regados com boa pinga". Foi sepultada no cemitério do Alto de S. João, na vala comum. À data, sua mãe (a Barbuda) teria entre 56 e 58 anos. Mais tarde, no feminino, viria a ganhar fama de boa cantadora a Cesária de Alcântara, que seria engomadeira e teria vivido fora do mundo da prostituição.
São os amores com o Conde Vimioso que levam a Severa às festas da nobreza e da burguesia. Consta que lhe pôs casa na Rua da Bemposta e que vinha muitas vezes buscá-la de sege, chegando a levá-la para o seu palácio do Campo Grande; outra vez, e por exemplo, levou-a em adequada comitiva para uma tourada que o Marquês de Nisa ofereceu na sua quinta da Foz, em Salvaterra-de-Magos, pelo S. João de 1845.
É deste modo que o fado começa a entrar nos salões ou a fazer parte das festas à porta fechada ou nas praias da moda (zona de Sintra e Ericeira), com adesão da burguesia e da nobreza. Pinto de Carvalho diz que entre 1868 e 1869 surgia a nova fase do fado: aristocrática e literária. O Marquês de Castelo-Melhor tocava guitarra e cantava o fado desde os seus tempos de estudante em Coimbra; convivia facilmente com outras classes sociais; também apreciava o toureio, sendo um ginetário de primeira ordem e sustentáculo da antiga escola portuguesa de cavalaria, como a entendia o Marquês de Marialva. D. José de Almada e Lencastre (escritor e jornalista) teria sido bom cantador de fado. Do próprio João de Deus chega-nos a indicação de que teria sido tocador de banza, cantor e poeta, enquanto estudante em Coimbra. José Maria Anchieta (futuro explorador africano) também se teria celebrizado no tocar da guitarra em terras do Mondego. Entre executantes ou amadores encontramos mais nomes: Conde de Oeiras; Dr. José Dória, tocador de viola em Coimbra; Conde da Anadia, distinto amador do fado; Marquês de Valença, distinto pianista, pai do Conde de Vimioso. A Condessa de Ficalho também ficou descrita como grande apreciadora do fadinho.


O Guitarrista




Importará dizer que a política do Movimento Regenerador, chamada dos “melhoramentos materiais”, instaurada em 1851, também teria dado o seu contributo à lenta mudança de costumes e de mentalidades, vindo também a fornecer novos temas ao fado.
Assim e aqui começaram também a ser convidados ou contratados para festas tocadores de banza, viola e guitarra, iniciando-se um percurso que, volvidos alguns anos, haveria de levar à profissionalização de músicos e cantadores, não esquecendo os mestres do ensino da viola e da guitarra. Lá iremos, a propósito do teatro, dos espectáculos para o grande público e das gravações de discos para gramofone. Sim, porque o cinema viria mais tarde e a rádio apareceria apenas em 1935.
Mas se, aparentemente ou de facto, o fado se elevava gradualmente em termos de estatuto social, o mesmo não seria válido nem automático para tocadores e cantadores, apesar de muitos terem embandeirado em arco no seu aspecto exterior, com novas poses e novas vestimentas, como as “jalecas à polca”, nem sempre isentas de algum ridículo e a alimentar rivalidades. Um autor da época escrevia: “Desde que os fidalgos e janotas gostam de ser fadistas, estão os fadistas a querer parecer janotas” (8).
De facto rivalizam, por assim dizer, a antiga e a nova fase do fado, e algumas letras chegam a reflectir o saudosismo do fado popular. E no registo discográfico da recolha do grupo Sons do Lena (7) encontramos o Fado Marcado, de que retiramos duas quadras:

Ó fado que foste fado
Ó fado que já não és
Ó fado que já viraste
Da cabeça para os pés

Há quem diga que o fado
Só nasceu para cantar
Quem o diz está enganado
Já vi o fado bailar.

Porventura, deixava-se aqui expresso o saudosismo da dança do fado. Curiosamente, ainda encontramos na obra de Pinto de Carvalho mais esta quadra:

Ó fado, que foste fado,
Ó fado, que já não és,
O fadinho invade tudo
Da cabeça até aos pés.

Discretamente, embora, o fado tornava-se mais literário, mais artístico e perdia muito do seu carácter popular. Popular urbano, acrescentaremos, porque a cantiga popular rústica ou rural tem outra génese, outras raízes e outra riqueza intrínseca.
Finalmente, consta que na noite de 3 de Maio de 1873 (8) houve no Casino Lisbonense o primeiro concerto público de guitarras, em que chegaram a interpretar-se trechos de óperas famosas. Este evento adquire particular significado se recordarmos que foi esta a época das famosas Conferências Democráticas do Casino, no mesmo local (antiga Rua da Abegoaria, actual Largo Rafael Bordalo Pinheiro), onde pontificaram homens como Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, entre muitos outros que discutiam filosofia, política, literatura e artes, em geral. É por isso que se fala da “geração de 70” e de “Os Vencidos da Vida”, mas o assunto não é para aqui.

(continua)

Manuel Paula Maça
manoel.maza@gmail.com


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