domingo, 13 de fevereiro de 2011

O FADO DO FADO V





COIMBRA TEM MAIS ENCANTO

A partir de meados do século XIX parece ter-se assistido a alguma divulgação do fado por todo o país. Tinhorão (por exemplo) avança tal asserção: “Desde a estruturação do género popular como canção solo, com acompanhamento de guitarra em menor, já desvinculada da dança – o que permitia ao cantador variar as inflexões da voz, esquecendo as nuances psicológicas do canto -, o fado começara a ultrapassar a sua fronteira original circunscrita aos redutos proletários de Lisboa”. Estudantes, pequenos fidalgos de província e boémios teriam sido agentes decisivos neste processo. Porém, à excepção de Coimbra, o fado pouco mais terá deixado para além de leves marcas ou referências descaracterizadas que hoje divisamos nos repertórios de alguns grupos folclóricos ou de cantares, de que já deixamos exemplo ao referir o grupo Sons da Lena (Batalha), a que acrescentaremos o “Fado da Taberna”, interpretado pelo Rancho Folclórico Os Peneireiros, de Martinchel.
Ainda assim, as nossas fontes deixam-nos nota da presença do fado no Porto. Camilo Castelo Branco (note-se que nasceu em Lisboa, na Rua das Gáveas, Bairro Alto) deixou o romance Eusébio Macário, com muito de ambiente fadista, por assim dizer. Pinto de Carvalho também registou alguns nomes de executantes nortenhos: Pedro Marié, cantador famoso, dado ao improviso de cantigas obscenas; Marcolino do Porto, um pobre músico ambulante; Carlos Pistótira, empregado no Teatro de S. João, cantador sem produção própria.
Mas já nos referimos a algumas figuras que ao longo do século XIX passaram por Coimbra em termos de vida académica, cujas aptidões vocais e musicais ficaram registadas. Homens como João de Deus, José Dória e José Maria Anchieta são apenas exemplos de quem levou e trouxe às costas - ou na alma - a banza, a viola ou a guitarra. E dizemos "homens" porque o fado de Coimbra era no masculino, num tempo e numa sociedade em que às mulheres estavam interditadas determinadas funções, cultura, formação e vida social, posto que bastaria que fossem boas esposas e boas mães.
Em Coimbra fixavam-se meses a fio sucessivas levas de estudantes, alguns deles predestinados a cursar a vida boémia. Foi o caso de Augusto Hilário da Costa Alves (n. 1864), que em 1890 se matriculou no 1º ano do curso de Medicina. Exímio tocador de guitarra e senhor de uma bela voz de barítono, o seu nome galgou os muros de Coimbra e espalhou-se pelo país. Fez actuações na Figueira da Foz, em Espinho, Viseu, entre outros lugares. Consta que participou numa festa de homenagem a João de Deus, no Teatro D. Maria II, em Lisboa, e que no final do espectáculo, perante enorme apoteose do público, atirou para o meio da multidão a sua guitarra, de que nunca mais nada se soube. O nosso Nobel da Medicina, Prof. Dr. Egas Moniz, teria estado nesta festa.
Hilário foi animador de serões académicos, cantando poetas como Guerra Junqueiro e António Nobre, para além das composições de que era autor e da sua grande capacidade de improviso. Mesmo estudando devagarinho, chegaria ao 3º ano do Curso de Medicina, tendo morrido em 3 de Abril de 1896, aos 32 anos, vítima de uma “ictericia grave hypertermica”, ao que achamos escrito.
O fado dos estudantes de Coimbra surge e afirma-se, pois, com novas sonoridades instrumentais, com vozes de barítono e de tenor, com fino sabor literário, com feição lírica e com uma elevação de conceitos e erudição que definitivamente o distinguem do seu antepassado popular de Lisboa. Surgem as serenatas para encanto poético das amadas, as baladas de feição trovadoresca e, mais tarde, a canção de vigorosa contestação política e social. Em vez de choramingar com pieguice as amarguras ou as intrigas mundanas da vida, o fado de Coimbra vinha e ficava para fazer embalar ou soluçar à guitarra o vigor das paixões generosas ou, mesmo, os seus desaires amorosos.

Manuel Paula Maça

manoel.maza@gmail.com

Etiquetas: