quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O ESTRONCA


Às vezes é bom agarrar as folhas da memória, caídas da árvore inexorável do tempo, arrastadas por ventos impiedosos, que nunca deixam de soprar. E há momentos que nos ajudam a entender melhor que, afinal, também a flor que desabrocha terá um dia as suas pétalas desfeitas ou arrastadas por uma qualquer intempérie de todo imprevisível. Os poetas, esses terão entendido há muito que os rios correm para o mar.
João Sebastião dos Santos morreu em 10 de Janeiro de 1998. Vivia na Carreira do Mato e teria 78 anos, à data.
Era o “João Estronca”, por alcunha e para os amigos. Também é assim que o recordo, porque assim o conheci e com ele convivi.
Fiz a 4ª classe na Escola Primária da Carreira do Mato, nos tempos da saudosa Dª. Elisa da Conceição Vale. A década de sessenta ia avançando e os meus pais decidiram que eu iria estudar para Abrantes, embora Lisboa estivesse nos horizontes próximos ou imediatos. A ideia agradou particularmente à minha avó materna (mulher sábia) que até aí achava que eu devia ser padre ou alfaiate, por estas actividades serem compatíveis com a minha saúde fragilizada por crises frequentes de bronquite asmática.
Já então o Francisco Maria dos Santos (filho do Estronca) estudava em Abrantes, algo mais adiantado que eu, nos estudos e na idade.
Os tempos eram difíceis, os transportes e as estradas quase inexistentes. As viagens de fim-de-semana entre Abrantes e a Carreira do Mato eram maioritariamente feitas a pé, e desde a primeira hora ficou combinado que sempre que possível o Francisco me faria companhia nestas andanças em que iria iniciar-me, com onze frescos anos.
Lembro-me muitas vezes de uma madrugada de segunda-feira de Inverno, com frio e chuva. Saímos da Carreira do Mato pelas 5 horas da manhã, pequenos e amedrontados, com o João Estronca a fazer-nos companhia, levando na mão uma pequena e frágil lanterna de azeite, na convicção de que assim iluminava o caminho. Passamos o Fojo e descemos a Ladeira da Felosa, entre pinheiros que vergavam, com o vento a soprar e a chuva sem deixar de cair.
Atingimos o alcatrão da estrada perto dos Casais da Pucariça, onde o João Estronca se despediu do filho e de mim, regressando à Carreira do Mato. Lá continuamos a pé até Abrantes, onde chegamos pelas 8 horas da manhã, completamente ensopados (lembras-te, Francisco?).
Os anos passaram. Eu e o Francisco seguimos cada um o seu itinerário. Mas o João Estronca morreu e partiu fisicamente, vão lá mais de 10 anos!
Nunca mais este homem simples há-de descer a Ladeira da Felosa com uma lanterna de azeite na mão!
“Um acto de amor que o meu pai teve para connosco”, escrevia-me o Francisco, em Fevereiro de 1998.
Curvo-me perante a memória deste homem bom, a esta espécie de janela que o tempo me traz, arrastando farrapos dispersos da história da Carreira do Mato e das suas gentes.

Manuel Paula Maça

Post-scriptum:
1. A palavra “estronca” consta dos dicionários, como substantivo feminino, para designar: forquilha para levantar grandes pesos; pau para impedir que o cabeçalho do carro (de bois?) pouse no chão. Embora no caso do nosso querido amigo se trate de alcunha, poderá merecer registo a conotação do termo com a vida rural e agrícola.
2. Antigamente os apelidos provinham sobretudo de alcunhas. Numa pesquisa pelas listas telefónicas da Região Centro, encontramos muitas pessoas com o apelido Estronca no nome.

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sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

RIO ZÊZERE. SUBSÍDIOS HISTÓRICOS

Algumas referências

Qualquer elementar manual de geografia diz que o Rio Zêzere nasce na Serra da Estrela e vem desaguar ao Tejo. Com efeito, é na actual vila de Constância (antiga Vila de Punhete), que estes rios se juntam, e não fica mal lembrar que existe no tecto da Igreja Matriz de Constância uma bonita pintura de José Malhoa, datada de 1899, que simboliza Nossa Senhora abençoando a união do Tejo com o Zêzere.
O tal rio que abraça (asfixia?) povoações da parte Norte do Concelho de Abrantes e que fornece muita água que, até, Lisboa consome, aparece referido em documentação diversa ao longo dos tempos, o que atestará da importância que sempre lhe foi reconhecida.

Datada de Maio de 1208 existe uma "Carta de composição feita entre a Ordem do Templo e o Prior do Convento de Santa Cruz de Coimbra, sobre os canais do Rio Zêzere em Martinchel, do porto de Cabalares (Cavaleiros?) até ao Pego de Capris" (1). Este documento está escrito em Latim Vulgar, e, em tradução livre, dirá o seguinte:

"Seja dado conhecimento, tanto aos presentes como aos vindouros, que eu, Senhor João César, prior de Santa Cruz, com o assentimento dos meus clérigos, fazemos uma carta de convenção e de perpétua constância com o Senhor Martinho Fromarigues, comendador em Palumbari (Pombal?), e com seus irmãos sobre os nossos e seus canais que temos no rio Zêzere, no local que se diz Martinchel (in loco qui dicitur Martinchel...), isto é, que fica no porto de Cabalares (Cavaleiros?) até ao pego de Capris, sobre aqueles que aí apenas temos ou com eles e seus irmãos pudermos fazer e sobre os moinhos se no próprio rio os pudermos construir com ele e seus irmãos e sobre a barca que navegar no próprio rio e sobre as armações (?) para pescar que aí pudermos fazer. Na verdade, após várias alterações, assim ficou estabelecido entre nós e eles próprios, isto é, que os próprios canais que ainda existem no local acima referido e os que fizermos por nosso e seu intermédio dividamos isto a meio. E se algum de nós não puder satisfazer a própria despesa de acordo com a escritura o outro que aí fizer o que deveria ser feito para utilidade de todos receba toda a despesa que aí fizer e depois de ter o que aí possuir dividamos a meio o que aí ficar. E se por acaso algum dos nossos ou de estranhos quiser contradizer este nosso pacto que entre nós decidimos pelo bem da paz não tenha qualquer poder e quanto aí reclamar ainda que seja apenas a parte que estiver embargada (?) divida-se em duas e (dê) ao dono da terra uma (parte) tanto quanto tiver sido melhorada e além disso seja amaldiçoado para sempre por todos os séculos dos séculos, àmen. Feita esta carta de convenção e de perpétua constância no mês de Maio, na era de 1208. Os que estiveram presentes. Talvez, porém, se deva saber que estes canais ficam na margem frente a Abrantes".

Note-se que no documento original a grafia utilizada para designar o rio é Ozezar, e que o Pego de Capris poderia ter dado lugar a Castelo de Bode.

Em 12 de Junho de 1462, a Chancelaria de D. Afonso V emitia uma "Carta régia pela qual é mandado que todos caniços dos canais da pescaria dos sáveis do Tejo e Zêzere sejam tecidos de rama ou verga, à maneira de mantas, em bandas de um palmo de largo..." (1).
Este documento procuraria disciplinar aspectos da pesca do sável, poupando os exemplares mais pequenos que seriam transportados por montes e vales e vendidos "como se fossem sardinhas", e foi mandado afixar em diversas localidades, destacando-se Martinchel, Abrantes e Punhete. Eram, igualmente, estabelecidas penas para os infractores, que, resumidamente, eram as seguintes: sendo de baixa condição social, seriam presos, conduzidos à prisão e açoitados; se de maior condição, pagariam uma multa em peças de ouro, das quais um terço seria para quem o tivesse denunciado.

Há, também, uma curiosa referência aos Rios Zêzere e Tejo e às suas zonas de confluência, num livro de História da Galiza, traduzido do Castelhano para o Galego (2). Referindo-se às movimentações do exército de Décio Júnio Bruto na Península Ibérica (cerca de 130 A.C.), o autor refere a seguinte passagem do historiador espanhol R. Menéndez Pidal: "El procónsul de la España Ulterior , que tenía sus fuerzas en el Bajo Tajo, por el que venían aprovisionamientos, acaso en Morón, frente a la horquilla formada por la confluencia de este río con el Zezere, esperó el ataque de gallegos e lusitanos en sus posiciones...".

O Étimo de Zêzere
É complexa esta questão, e mais não pretendemos que dar ou recordar algumas achegas.
Nos documentos datados de 1208 e 1462 o nome do rio é Ozezar, e também o Professor J. Diogo Correia (3) diz que teria existido na sua foz um castelo com o mesmo nome (Ozezar), que teve foral em 1174.
O Padre Cândido da Silva Teixeira (4) escreveu que "o rio Zêzere foi outrora conhecido pelos nomes de Zacor e Ozecaro. Os latinos chamaram-lhe Ozecarus...".
Por um lado, os historiadores tendem a sugerir uma origem botânica para o étimo, podendo o rio ter colhido o nome das árvores que cresciam nas suas margens. Mas também admitem que possa ter sido ao contrário, ou seja, o rio a dar o nome às árvores. É que nas margens do Zêzere nasciam espontaneamente os azereiros ou zezereiros, algumas vezes referidos também como zenzereiros.
Mas o Prof. Diogo Correia coloca mais hipóteses. Uma é o facto de o nome de César aparecer muitas vezes transformado em Zecar, e, neste caso, Ozecari poderia ser a "villa" de um indivíduo com esse nome (genitivo antroponímico de Ozecarus). A outra é a palavra Zez, de origem berbérica, que significaria cigarra, e a que se poderia ter juntado uma terminação er ou re, por questões de pronúncia. Recordem-se topónimos como Tanger, Alvaiázere, etc., para ilustrar a ideia.
Em 1997, adquirimos uma obra da autoria do Dr. Candeias da Silva (5). Diz-nos o historiador, citando as Memórias Paroquiais relativas à povoação de Janeiro de Cima, num excerto saído da pena do cura Joseph Pereyra: "Chama este rio por seu nome Zezere, e dizem que este nome se deriva de Sezar, e que do mesmo Sezar teve seu princípio, por ser habitado por elle em o tempo antiquo..."

Em que ficamos, então?
Não há verdades definitivas para estas questões, e o objectivo deste apontamento é, essencialmente, deixar mais algumas notas históricas sobre o rio Zêzere, que porventura outros possam complementer ou enriquecer.
A importância deste rio através dos tempos é inegável: se outrora fornecia pescado e permitia transporte de mercadorias e de madeiras, fazendo também funcionar moinhos e azenhas, hoje permite e fomenta actividades tão diversas como o turismo, o desporto, a produção de energia eléctrica e o abastecimento de água. Tudo isto independentemente das origens do seu nome.

Manuel Paula Maça




Ao lado; Rio Zêzere em Janeiro de Cima, Fundão












(1) Documentos inseridos em "História Florestal, Aquícola e Cinegética", editado pela Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, 1980.

(2) "Grandeza e Decadência do Reino de Galicia", Emilio Gonzales Lopez, Editorial Galáxia, Vigo, 1978.

(3) In "Correio do Ribatejo", 26.01.1963.

(4) "Sernache do Bom Jardim - Traços Monográficos", Lisboa, 1905, Papelaria L.A. Bécare - Typographia.

(5) “O Concelho do Fundão Através da Memórias Paroquiais de 1758”.

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