domingo, 1 de agosto de 2010


ÓPERA "O BARBEIRO DE SEVILHA" EM ÓBIDOS

Há semelhança dos anos anteriores, está prevista para o próximo Sábado, 7 de Agosto, a representação de uma ópera famosa, em Óbidos. Desta vez, teremos "O Barbeiro de Sevilha", de Rossini.

Sem pretensiosismos, e porque há muitos anos este tipo de manifestação artística e cultural era ocasionalmente motivo de interesse de um grupo de amigos da Carreira do Mato, decidimos rever um texto de 1992, que aqui fica.


UM POUCO DE HISTÓRIA

Para uma abordagem de O Barbeiro de Sevilha é necessário falar do escritor francês Beaumarchais, e da sua famosa trilogia para comédias de teatro falado: Le Barbier de Séville, Le Mariage de Fígaro e La Mère Coupable. Traduzindo os nomes para Português, diremos que Mozart escolheu "As Bodas de Fígaro", estreada a 1 de Maio de 1786, em Viena; Rossini escolheu "O Barbeiro de Sevilha", estreado a 20 de Fevereiro de 1816, no Teatro Argentina, em Roma.
Rossini nasceu em 29 de Fevereiro de 1792, numa pequena cidade da costa adriática chamada Pesaro, que fazia, então, parte do Estado Pontifício. Viria a falecer em Paris, a 13 de Novembro de 1868. Teve uma infância agitada, por um vasto conjunto de razões. Os pais eram músicos: ele, instrumentista; ela, cantora.
Os tempos eram difíceis; as deslocações de terra em terra eram o pão-nosso de cada dia. A juntar a isto, um conjunto de eventos ideológicos, políticos e militares, tendo como pano de fundo as campanhas Napoleónicas, que chegaram a levar à prisão o pai do pequeno Rossini. A família conhece alguma tranquilidade quando se fixa em Lugo e em Bolonha, o que acabou por permitir ao pequeno contactos com obras de Haydn e Mozart. De facto, foi em Bolonha que sedimentou a sua formação musical, e, aos 19 anos, regeu "As Estações", de Hayden.
Por essa altura, e a par de alguns teatros de grande importância, abundavam nas principais cidades teatros pobres, às vezes sem coros e com orquestras com insuficiente número de músicos. Isto determinava a existência de músicos, cantores, compositores e, até, de empresários itinerantes. Neste cenário quase caótico, as obras eram pagas miseravelmente... mas isto também contribuía para o desenvolvimento da ópera em Itália.
É neste quadro que Rossini assina com o Duque Sforza, empresário do Teatro Argentina, de Roma, um contrato algo humilhante e pouco vantajoso, que o obriga a compor e levar à cena, no Carnaval da temporada de 1816, uma ópera cómica (opera-buffa, na linguagem operática). Seguindo os costumes da época, depois de paga, a obra ficava propriedade do empresário. Como tal, Rossini recebeu 1.200 Francos e a oferta de um casaco com botões doirados, para se apresentar decentemente vestido. Com ironia, Rossini atribuíu ao casaco o valor de 100 Francos...
Partindo da obra de Beaumarchais, Cesare Sterbini compôs o libreto, no meio de uma série de dificuldades que seria fastidioso enumerar. Finalmente, a 20 de Fevereiro de 1816 deu-se a primeira récita. O público não gostou, e na verdade uma série de incidentes serviram para que Rossini fosse grosseiramente comentado. Na noite seguinte o compositor argumentou uma indisposição para não estar no espectáculo. Mas desta vez o público gostou e saiu à rua a exigir a sua presença. Imortalizava-se assim "O Barbeiro de Sevilha".
Resta dizer que Rossini compôs 40 óperas e muita música religiosa.
Algumas vezes o compositor é acusado de falta de originalidade e de plagiar obras de outros músicos. Com efeito, os costumes da época eram algo permeáveis a alterações e adaptações das obras, já que a ideia de direitos de autor não existia. Mas Rossini tirava sobretudo de si próprio, e de facto algumas das suas obras incluem material extraído dos seus anteriores trabalhos.
Além disto, importa lembrar que Rossini levava uma vida agitada, e que viajava muito. Por vezes compunha as árias principais e encomendava a músicos menores a execução do restante.
Como curiosidade, note-se que Rossini também se notabilizou como bom cozinheiro e amante de boa comida. Ainda hoje alguns restaurantes servem os Tornedós Rossini...


O ARGUMENTO

É madrugada. Aparece a rua onde se ergue a casa do Dr. Bártolo. O Conde de Almaviva, o Grande de Espanha, está desesperadamente apaixonado por Rosina, suposta filha do Dr. Bártolo. Acompanhado pelo criado Fiorello e por um grupo de músicos, oferece-lhe uma doce serenata e canta "Ecco ridente in cielo". Como Rosina não aparece e a manhã está prestes a romper, Almaviva paga aos músicos, que ficam teimosamente durante algum tempo a agradecer-lhe a generosidade, acabando por retirar-se.
É então que se ouve ao longe a voz alegre de Fígaro, cantando a célebre ária "Largo al factotum della città", onde faz gáudio dos seus dotes e das suas influências: todos o procuram, todos o chamam, todos lhe pedem opinião – ele é barbeiro, ele é cirurgião, ele é conselheiro! Sem ele não se casam as raparigas da cidade e até as viúvas recorrem aos seus préstimos...
Fígaro é (não admira) o barbeiro do Dr. Bártolo, e quando o Conde de Almaviva lhe confidencia o seu amor por Rosina fica no ar a promessa de uma ajuda para os aproximar, e uma revelação particularmente importante: é que Rosina não é filha, mas sim pupila do Dr. Bártolo. Ele próprio quer casar com ela!!!
O médico sai de casa. Almaviva e Fígaro traçam o plano: o Conde vai tentar que Rosina se apaixone por ele, mas não lhe revelará o nome nem a posição.
Por sugestão de Fígaro, Almaviva dedica a Rosina uma canção dizendo que se chama Lindoro. Ela responde mas é interrompida... Almaviva oferece ao barbeiro uma bolsa bem recheada de dinheiro, para ele lhe arranjar maneira de entrar em casa do Dr. Bártolo.
O plano de Fígaro é este: durante a tarde vai chegar um Regimento Militar à cidade. O Conde de Almaviva vai disfarçar-se de soldado e ficar aboletado em casa do Dr. Bártolo. Para não levantar suspeitas fingir-se-à embriagado; como é amigo do Coronel que comanda as tropas, o resto estará facilitado. Para o caso de algum imprevisto ou de mais alguma ajuda, Fígaro informa o Conde da localização da sua loja.

A acção passa a uma sala em casa do Dr. Bártolo. Rosina está só e recorda uma voz que há pouco lhe tocou o coração. Decide que Lindoro lhe pertencerá! Pretende, mesmo, fazer-lhe chegar uma carta às mãos, mas não sabe como. Nisto, entra Fígaro, mas a rapariga não pode falar-lhe porque atrás vêm o Dr. Bártolo e D. Basílio, este, jesuíta e professor de música.
Rosina e Fígaro retiram-se sem serem vistos. É então que Bártolo confessa a D. Basílio o propósito de se casar com a rapariga no dia seguinte. Esta é a forma que o velho avarento encontra para não ter que entregar-lhe o dote.
Mas D. Basílio tem uma novidade a dar-lhe: viu em Sevilha o Conde de Almaviva, o sedutor de Rosina!... Mas o que importa a Bártolo é elaborar o mais rapidamente possível a escritura de casamento.
Fígaro ouviu a conversa e decide por Rosina a par das intenções do tutor. Esta, garante nunca se casar com ele, e confessa o seu amor por um jovem desconhecido com quem Fígaro falava pela manhã.
O barbeiro diz tratar-se de um primo seu chamado Lindoro, que se acha apaixonado. Rosina quer saber tudo, e Fígaro traça o retrato dela própria, o que a deixa radiante e feliz: "Dunque io son la fortunata!". Quando sai, Fígaro leva um bilhete escrito de Rosina para Lindoro/Almaviva.
De regresso, o Dr. Bártolo faz apertado inquérito a Rosina por causa de uma folha de papel que falta e porque o aparo da caneta está sujo de tinta... Ela justifica-se com o envio de um presente com um desenho a Marcelina, filha de Fígaro, que se encontra doente.
Batem à porta. Berta, a criada, vai abrir. Entra um soldado com ar embiagrado, ostentando um documento que lhe dá o direito a instalar-se ali. O Dr. Bártolo fica furioso e procura desesperadamente um documento que o isenta da obrigação de receber militares em sua casa. O soldado consegue dizer a Rosina que o seu nome é Lindoro. O Dr. Bártolo encontra o precioso documento, que exibe, triunfante, ao que o soldado (entenda-se Lindoro ou Conde de Almaviva) o destrói. Estabelece-se uma certa desordem, e D. Basílio entra no meio de um barulho ensurdecedor, com uma partitura na mão... Nisto chega Fígaro, com os apetrechos da sua profissão; discretamente, aconselha moderação a Almaviva, pois que a rua está cheia de gente a ouvir o que se passa.
Batem à porta. É a guarda que vem intervir! É dada ordem de prisão ao soldado. Este chama-o de parte e mostra-lhe as insígnias da nobreza. E tudo muda: oficial e guardas apresentam armas. O Dr. Bártolo fica estupefacto, incapaz de falar, ao que o barbeiro Fígaro comenta com ironia que o Dr. Bártolo parece uma estátua: "Guarda, Don Bártolo, sembra una statua".

E termina assim o 1º acto.

A acção do 2º acto inicia-se noutra sala, em casa do Dr. Bártolo.

O velho tutor está só e intrigado com tudo o que se passou. Ninguém conhecia o soldado, e por isso poderia pensar tratar-se de algum enviado do Conde de Almaviva.
Um jovem jesuíta apresenta-se cortesmente à porta. Diz ao Dr. Bártolo chamar-se D. Alonso e ser discípulo do professor de música D. Basílio, que está muito doente; por isso, vem substituí-lo na lição de música a Rosina.
O Dr. Bártolo fica desconfiado, mas acaba por deixar entrar o suposto D. Alonso, que não é mais nem menos que o Conde de Almaviva, que Rosina reconhece como sendo Lindoro.
Mas, por causa das coisas, o médico faz questão de assistir à aula de música!
Rosina canta uma ária. No final, o Dr. Bártolo declara que no seu tempo a música era outra, e exemplifica cantando uma ária à mistura com uns passos de dança com a sua pupila Rosina. É então que chega Fígaro, que disfarçadamente substitui Rosina na dança.
Quando descobre que está a dançar com o barbeiro, o tutor fica furioso...
Trava-se uma discussão em que o Dr. Bártolo, muito zangado, diz que naquele dia não quer fazer a barba. Fígaro argumenta que no outro dia não pode ele, por toda uma série de afazeres... além disso não é nenhum barbeiro de aldeia! Se ele quiser, que arranje outro! Vencido, o Dr. Bártolo entrega ao barbeiro um molho de chaves, para poder ir a determinada dependência buscar o que for preciso. De imediato Fígaro se apercebe que naquele molho está a chave de acesso à casa e que é essa a grande possibilidade de ajudar o Conde a raptar Rosina nessa mesma noite.
Quando Fígaro se prepara para começar a fazer a barba ao Dr. Bártolo, entra D. Basílio (supostamente doente). Estabelece-se grande alvoroço. D. Basílio olha com desconfiança para o jovem jesuíta. Os outros, instigados por Fígaro, convencem D. Basílio a ir deitar-se porque está muito doente. O falso D. Alonso (Conde de Almaviva/Lindoro) deposita-lhe nas mãos uma bolsa com dinheiro. Fígaro declara, mesmo, peremptoriamente, que D. Basílio está com escarlatina! O Dr. Bártolo, aflito, passa-lhe uma receita. D. Basílio não percebe nada da situação, mas como tem dinheiro na mão e insistem que está doente, acaba por fazer-lhes a vontade e ir-se embora.
Finalmente, Fígaro vai fazer a barba ao Dr. Bártolo. Tapa-lhe os olhos com sabão, para ele não ver Rosina a falar com o namorado, o que não evita que ele oiça algumas palavras, compreendendo que caiu num embuste. O barbeiro e o falso D. Alonso são insultados e postos fora de casa.
Convirá dizer aqui que Almaviva e Rosina se sentem felizes e decididos a celebrar o casamento nessa noite, para o que irão forçar o notário a celebrar a escritura. Para Almaviva é importante que Rosina tenha gostado dele supondo-o um rapaz pobre chamado Lindoro, embora na realidade Conde e senhor de grande fortuna. Este assunto é, aliás, tema de uma passagem que é usual suprimir na representação.
Através de uma escada, Almaviva e Fígaro entram por uma janela na casa do Dr. Bártolo. Rosina aparece vestida de noiva. Nisto entram na sala D. Basílio e um notário, posto que o avarento Dr. Bártolo ainda alimentava o projecto de uma escritura de casamento forçada, que o dispensaria do dote. Mas D. Basílio e o notário são convencidos a fazer, sim, a escritura do casamento de Almaviva e Rosina, dizendo Fígaro que esta é sua sobrinha...
Quando tudo se esclarece, o casamento está consumado. O Dr. Bártolo diz que foi traído, mas fica acomodado quando sabe que Almaviva renuncia ao dote de Rosina. Dir-se-ia que tudo está bem quando acaba bem, ainda que aparentemente.

Em Portugal, na temporada de 1987-1988, o Teatro Nacional de São Carlos apresentou esta ópera em diversas salas, tendo a maior parte das récitas ocorrido no Teatro da Trindade, em Lisboa.


OS AMIGOS DE ROSSINI
A pretexto da comemoração do bicentenário do nascimento de Rossini, os "Amigos do São Carlos" estão a levar a cabo algumas iniciativas que constam de sessões preenchidas com a exibição de vídeos de obras de Rossini, com a participação de nomes famosos, tanto em direcção de orquestra como em vozes (vd. jornal Expresso, 24.10.92).
Leiria terá a 2 de Dezembro, no Teatro José Lúcio da Silva, uma representação de O Barbeiro de Sevilha.


Manuel Paula Maça manoel.maza@gmail.com
1 de Agosto de 2010

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A doença de Eça de Queirós


“… ontem, por equívoco e más informações, dei
um passeio tremendo (perto de 14 quilómetros)
sob um sol ardente e uma nortada furiosa
à busca do Pinhal da Guia!”

Eça, carta a Emília, Cascais, 11 de Maio de 1898


José Maria Eça de Queirós morreu em 16 de Agosto de 1900, em Paris. Era cônsul de Portugal, tinha 55 anos.
Perante descrições e fotografias facilmente associamos ao escritor fragilidade física e doença, embora uma altura estimada entre 1,72 e 1,75 m possa favorecer a ideia, em termos físicos.
Qual a doença que teria vitimado Eça de Queirós?
O tema tem merecido o interesse de biógrafos e historiadores, alguns deles médicos.
As hipóteses possíveis comportam riscos, já que os registos são insuficientes ou inexistentes, e os meios e as técnicas de diagnóstico da época eram limitadas. Ficam-nos, essencialmente, os escritos do próprio e dos seus amigos, que poderemos cruzar com aspectos familiares, viagens e alimentação. Mas surgem dificuldades que importa referir: por vezes, Eça utiliza uma linguagem pouco clara, ou quase codificada (fala de acrescentos, crescimentos, febres palustres, sublevação intestinal, “a minha malária”); depois, muita documentação perdeu-se e outra foi mantida e conservada pelos familiares, por razões de recato ou outras.
Eça viajava e trabalhava muito, alimentava recatadas mas ousadas aventuras amorosas, fumava, apreciava a boa mesa e saboreava longas noitadas, e parece que nem a família nem os amigos (médicos, alguns) se terão apercebido de alguma doença grave. “Para os médicos, tratar-se-ia de um cólon irritável (ou cólon espástico) e nunca adiantaram muito”, escreveu o Dr. Álvaro Sequeira (1), que, analisando e eliminando hipóteses, concluía com a possibilidade de um tumor maligno do corpo ou da cauda do pâncreas o ter levado à morte.
Importará, porém, a prudente asserção do referido clínico: “Nada nos garante que os sintomas que Eça vai apresentando ao longo de muitos anos sejam obrigatoriamente parte dum mesmo quadro clínico”. De facto, qualquer pessoa pode sofrer episodicamente de problemas respiratórios, digestivos, psíquicos, etc.
Muitos ascendentes de Eça teriam morrido de tuberculose pulmonar, e, mais tarde, seus irmãos Alberto e Carlos também teriam sucumbido à doença (1886 e 1888, respectivamente). Calvet de Magalhães (2) acrescenta à lista a irmã Henriqueta, que não vemos referida noutras fontes. Alguns investigadores viriam, pois, a apontar como causa possível da morte do escritor a tuberculose visceral (3). Gentil Marques viria a propor tuberculose mesentérica (4). Mais tarde, o Dr. António Catita colocaria a hipótese de amebíase intestinal crónica, com origem na viagem de 1869 ao Egipto e à Palestina, agudizada com a estada em Havana (1872 – 1874), que era outra zona endémica de amebíase (5). Afastada ficava, há muito, uma eventual tuberculose pulmonar, incompatível com os longos passeios que o escritor dava, a pé, mesmo quando ia a ares ou para as estâncias termais, tratar-se.
Recentemente, o Dr. Ireneu Cruz retomou o assunto (5), admitindo que os sintomas descritos são compatíveis com uma doença crónica que se instalou e desenvolveu durante 25 ou mais anos: diarreia crónica sem sangue, com emagrecimento, nevralgias, febre e, por fim, edemas dos membros inferiores, sugerindo uma síndroma de má absorção, uma deficiente absorção dos alimentos pelo intestino delgado. Grosso modo, e face ao arrastamento da doença, para este gastrenterologista não será de excluir a hipótese de um carcinoma, mas valoriza e deixa à discussão a hipótese da doença de Chron, para a qual a medicina não dispunha dos recursos de tratamento actualmente disponíveis.
Em geral, os biógrafos estão de acordo quanto à precária saúde de Eça nos últimos meses ou no último ano de vida. Afectado por alterações psíquicas e emocionais, pela doença de 2 filhos e por dificuldades financeiras, talvez lhe tenham faltado o ânimo e as faculdades para rever e fazer publicar diversas obras, que acabariam por ser editadas a título póstumo, com a intervenção de familiares e amigos. De facto, a partir de Fevereiro de 1900, a sua vida é um percurso de sofrimento, de terra em terra. Acabaria por regressar a Paris, onde viria a morrer a 16 de Agosto.

Os Médicos
Coloca-se a questão do papel e do desempenho dos médicos ao longo da vida, ou durante a doença de Eça de Queirós. Sabemos que alguns dos seus amigos eram médicos e um deles – Carlos Lima Mayer – estudou em Portugal e na Bélgica e quase concluiu o curso de Medicina (6), mas não há registo de que se tenham apercebido da degradação progressiva do seu estado de saúde.
O médico que mais acompanhou Eça foi o brasileiro Melo Viana, que também viveu em Paris. Em Maio de 1900 pediu o auxílio do famoso médico francês Bouchard. Também este recomendou tratamento nas termas suíças de Glion-sur-Montreux, provavelmente por se não ter apercebido da gravidade da situação clínica do paciente.
Ao desgaste e ao cansaço físico e psíquico, Eça junta as doenças dos dois filhos mais velhos, ainda que debeladas, sem sequelas.
No regresso da Suíça Eça é um homem debilitado, desesperado, afectado pelos habituais problemas financeiros. Volta a ser observado por Bouchard, que desta vez se apercebe do grave quadro clínico e manda preparar um soro salino isotónico, no Instituto Pasteur.
O soro não chegou a tempo, nem sabemos se teria utilidade.
O escritor morria na tarde de 16 de Agosto de 1900, aos 55 anos.

Manuel Paula Maça manoel.maza@gmail.com


2010.08.01

(1) Medicina Interna, Vol. 7, N. 3, 2000.
(2) “José Maria – A Vida Privada de um Grande Escritor”, Bertrand Editora, 1994.
(3) “Dicionário de Eça de Queiroz”, A. Campos Matos, Caminho, 1988.
(4) “Eça de Queiroz. O Romance da sua vida e da sua obra”, Romano Torres.
(5) “O Caso clínico de Eça de Queiroz – Contributo para a sua Patobiografia”, Dr. Ireneu Cruz, Caminho, 2006.
(6) Alguns biógrafos dizem que concluiu o curso e que era médico, o que não nos parece exacto.

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Eça de Queirós na Carreira do Mato


EÇA DE QUEIRÓS NA CARREIRA DO MATO

“Tingi-me com amoras, fui irmão das abelhas, discuti com o Vento
E mais do que a erva e as árvores aproveitei-me da chuva”

Joaquim Pessoa



Nos tempos da infância, a minha avó e os homens da minha terra eram sábios. Neles habitava uma ligação panteísta à terra, como se tivessem nascido das suas entranhas, já com as mãos calejadas e as articulações necrosadas. Aceitavam resignadamente uma terra que comia mais do que aquilo que lhes dava, onde e quando felicidade e virtude coincidiam e rimavam com resignação.
Assim, a década de 50 corria vagarosa, num arrastar de dias, semanas e meses.
Os anos tornaram-se perceptíveis com a ida para a escola primária (curvo-me, com carinho, respeito e saudade em memória da D. Elisa). Era como se o “passar de classe” fizesse dos anos uma coisa visível e real, e a evolução e a mudança fossem coisas possíveis e, até, de algum modo, inevitáveis.
Para chegar onde pretendo, recordo que foi no final da década de cinquenta do século passado, que os receptores de rádio (as telefonias) começaram a chegar à Carreira do Mato. Eram aparelhos de válvulas incandescentes, alimentados por baterias de chumbo, que era necessário mandar carregar periodicamente, pois a energia eléctrica só viria em 1967 (27 de Agosto). Aquelas caixas enormes impressionavam e criavam à volta uma auréola de fantástico e maravilhoso. Recordo as lojas do Ti Martinho, do Zé Raloto, do Xico Neco, e de outros – valia a pena ir espreitar à porta e saborear aquele ambiente de colorida e estranha magia, com música e vozes vindas não se sabia donde.
Com a tecnologia dos transístores (menor espaço e menor consumo de energia), aos poucos, as casas particulares também começaram a ter telefonias a pilhas, embora, inicialmente, a sua posse pudesse ser considerada um luxo ou uma vaidade, até porque as pilhas não permitiam longo tempo de utilização, sendo caras e difíceis de obter localmente. Recordo e registo marcas de velhos aparelhos a pilhas, que iam fazendo a sua aparição: Philips, Siera, Blaupunkt, Grundig, Telefunken… O meu pai optou por um aparelho um pouco melhor, da marca National, que custou 1.800 escudos numa casa de penhores na Rua Duque de Palmela, em Lisboa – duas ou três semanas de salário, à data, imagino. Funcionava com 4 pilhas de 1,5 volts, em série (6 volts).
De um ponto de vista técnico, mas também histórico, convirá dizer que estes aparelhos funcionavam por modulação de amplitude (daí as iniciais AM), normalmente com onda média (MW), para recepção de emissões locais ou de curta distância, e onda curta (SW ou KW), para captar emissões de longa distância. Só bem mais tarde chegariam a Portugal as emissões em modulação de frequência (FM ou UKW).
Em 1930 foi criada a Direcção dos Serviços Radioeléctricos, na dependência dos CTT, em cujas instalações me lembro de ir pagar a taxa anual de 100$00.
As primeiras emissões em Onda Média ocorreram em 1932; as de Onda Curta viriam em 1934.
Em 4 de Agosto de 1935 foi criada a Emissora Nacional de Radiodifusão, tornada organismo autónomo em 1940.
Nascido em Fevereiro de 1931, também o RCP começava a emitir em Novembro seguinte. Mesmo assim, outras pequenas estações rádio privadas vinham emitindo desde meados da década de 1920, ainda que sem regularidade, pois fechavam nas férias ou quando os emissores avariavam e se esperava por peças sobressalentes (caso da CT1AA, fundada em 1924).
Os aparelhos de rádio influenciaram decisivamente a vida em família, trazendo a produção e divulgação de informação e de propaganda política, a criação de orquestras e grupos musicais, teatro e folhetins radiofónicos (estes, antepassados próximos das novelas televisivas), transmissão de cerimónias religiosas, relatos de desafios de futebol, etc. Graças à onda curta, ainda na década de 1930, surgiu o programa “A Hora da Saudade”, que podia ser acompanhado pelos emigrantes portugueses em continente americano e pelas tripulações e trabalhadores dos navios de pesca, em mares longínquos.
Recuando à velha casa onde nasci, na Carreira do Mato, revejo a minha mãe, a minha irmã e a minha avó materna, na modesta cozinha onde estava o rádio e onde, em geral, se passavam os serões.
Na aldeia, a qualidade de recepção das estações de rádio era má, à excepção da Emissora Nacional, mas vêm daí as minhas primeiras memórias de nomes como Walter Scott (o romance Ivanhoe), Odete de Saint-Maurice e Alice Ogando - porque só uns anos mais tarde, já em Lisboa e noutras estações, me chegariam “A Lélé e o Zéquinha”, com Irene Velez e Vasco Santana. A 18 de Março de 1947 vieram os “Parodiantes de Lisboa” (não esquecendo a “molenga” do Compadre Alentejano, ou o inspector Patilhas e o seu ajudante Ventoinha).
Eu não suspeitava que um dia, bem mais tarde, viria a ser um apreciador e curioso da obra e da biografia de Eça de Queirós, pois a Emissora Nacional também me prendeu com “A Ilustre Casa de Ramires”. O nome do autor e do romance ficaram-me na memória, e, talvez por isso, o primeiro livro de Eça de Queirós que me veio parar às mãos, ainda que antes de tempo.
Fica um pretexto longínquo para justificar, em parte, alguns textos que passarão a aparecer neste local, o que a nacionalidade e a universalidade de Eça justificarão.
Afinal, Eça de Queirós ia à Carreira do Mato!

Manuel Paula Maça manoel.maza@gmail.com


2010-07-28

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