domingo, 13 de fevereiro de 2011

O FADO DO FADO V





COIMBRA TEM MAIS ENCANTO

A partir de meados do século XIX parece ter-se assistido a alguma divulgação do fado por todo o país. Tinhorão (por exemplo) avança tal asserção: “Desde a estruturação do género popular como canção solo, com acompanhamento de guitarra em menor, já desvinculada da dança – o que permitia ao cantador variar as inflexões da voz, esquecendo as nuances psicológicas do canto -, o fado começara a ultrapassar a sua fronteira original circunscrita aos redutos proletários de Lisboa”. Estudantes, pequenos fidalgos de província e boémios teriam sido agentes decisivos neste processo. Porém, à excepção de Coimbra, o fado pouco mais terá deixado para além de leves marcas ou referências descaracterizadas que hoje divisamos nos repertórios de alguns grupos folclóricos ou de cantares, de que já deixamos exemplo ao referir o grupo Sons da Lena (Batalha), a que acrescentaremos o “Fado da Taberna”, interpretado pelo Rancho Folclórico Os Peneireiros, de Martinchel.
Ainda assim, as nossas fontes deixam-nos nota da presença do fado no Porto. Camilo Castelo Branco (note-se que nasceu em Lisboa, na Rua das Gáveas, Bairro Alto) deixou o romance Eusébio Macário, com muito de ambiente fadista, por assim dizer. Pinto de Carvalho também registou alguns nomes de executantes nortenhos: Pedro Marié, cantador famoso, dado ao improviso de cantigas obscenas; Marcolino do Porto, um pobre músico ambulante; Carlos Pistótira, empregado no Teatro de S. João, cantador sem produção própria.
Mas já nos referimos a algumas figuras que ao longo do século XIX passaram por Coimbra em termos de vida académica, cujas aptidões vocais e musicais ficaram registadas. Homens como João de Deus, José Dória e José Maria Anchieta são apenas exemplos de quem levou e trouxe às costas - ou na alma - a banza, a viola ou a guitarra. E dizemos "homens" porque o fado de Coimbra era no masculino, num tempo e numa sociedade em que às mulheres estavam interditadas determinadas funções, cultura, formação e vida social, posto que bastaria que fossem boas esposas e boas mães.
Em Coimbra fixavam-se meses a fio sucessivas levas de estudantes, alguns deles predestinados a cursar a vida boémia. Foi o caso de Augusto Hilário da Costa Alves (n. 1864), que em 1890 se matriculou no 1º ano do curso de Medicina. Exímio tocador de guitarra e senhor de uma bela voz de barítono, o seu nome galgou os muros de Coimbra e espalhou-se pelo país. Fez actuações na Figueira da Foz, em Espinho, Viseu, entre outros lugares. Consta que participou numa festa de homenagem a João de Deus, no Teatro D. Maria II, em Lisboa, e que no final do espectáculo, perante enorme apoteose do público, atirou para o meio da multidão a sua guitarra, de que nunca mais nada se soube. O nosso Nobel da Medicina, Prof. Dr. Egas Moniz, teria estado nesta festa.
Hilário foi animador de serões académicos, cantando poetas como Guerra Junqueiro e António Nobre, para além das composições de que era autor e da sua grande capacidade de improviso. Mesmo estudando devagarinho, chegaria ao 3º ano do Curso de Medicina, tendo morrido em 3 de Abril de 1896, aos 32 anos, vítima de uma “ictericia grave hypertermica”, ao que achamos escrito.
O fado dos estudantes de Coimbra surge e afirma-se, pois, com novas sonoridades instrumentais, com vozes de barítono e de tenor, com fino sabor literário, com feição lírica e com uma elevação de conceitos e erudição que definitivamente o distinguem do seu antepassado popular de Lisboa. Surgem as serenatas para encanto poético das amadas, as baladas de feição trovadoresca e, mais tarde, a canção de vigorosa contestação política e social. Em vez de choramingar com pieguice as amarguras ou as intrigas mundanas da vida, o fado de Coimbra vinha e ficava para fazer embalar ou soluçar à guitarra o vigor das paixões generosas ou, mesmo, os seus desaires amorosos.

Manuel Paula Maça

manoel.maza@gmail.com

Etiquetas:

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O FADO DO FADO IV

Adeus Parceiros das Farras, dos Copos e das Noitadas


Amália Rodrigues (n. em 1920) emerge como profissional do fado na década de 30 do século XX. Em 1949 António Ferro levou-a à presença de Salazar, e em pouco tempo o fado passou fronteiras. Merecem-nos respeito a humildade das suas origens e a sua voz, que viria a correr mundo, ainda que pelas mãos do regime vigente. Em 1968, em Madrid, recebeu das mãos de Isabel Franco (cunhada do ditador espanhol) a condecoração de “Isabel, a Católica”. Foi a própria Amália que deixou a razão na sua biografia: “por eu cantar bem a música espanhola”.
Não iremos indagar sobre a música espanhola cantada por Amália, embora seja conhecida a incaracterística cantiga dos “caracóis e dos espanholitos”, e as menos divulgadas cantigas de amigo (galaico-português), como “pois nossas madres van a San Simon...”.

Fizemos este salto temporal para deixar algumas questões. Que voltas, que caminhos percorreu o fado, ao longo do século XX? Onde ficou a cantiga de viela, onde está a suposta canção nacional? Por onde andou a cantiga popular urbana de Lisboa, chamada fado, até desaguar nos circuitos comerciais, onde o vinho tinto cedeu o lugar ao uísque, na função de regar a goela?
Vimos como o fado chegou às classes média e alta, ou seja, como o produto das classes baixas passou para o consumo das classes altas. É nesse contexto de transformações imensas que surge a já referida profissionalização de músicos (executantes e mestres) e de cantadores, se não, mesmo de compositores de músicas e de letras, com uma espécie de "mão-de-obra artística". Compõem-se e vendem-se partituras de fados para piano, e, em 1848, instala-se e notabiliza-se a Casa Sassetti. Lisboa começa a dispor de salas de espectáculo com a designação de teatros: dos Condes, do Bairro Alto, do Ginásio, do Príncipe Real, da Rua do Salitre (que daria o “Variedades”), da Trindade.... Muitas delas são espaços polivalentes, e o próprio teatro de revista irá render-se à viola e à guitarra, e às vozes que se combinam, no masculino e no feminino. Surgem também, em consequência, os empresários.
São muitos os registos exemplificativos disponíveis. Recorremos ao já referido Tinhorão (8), que refere o empresário Ernesto Desforges, que alugou o Teatro Lisbonense, promovendo espectáculos orientados pelo mestre guitarrista João Maria dos Anjos: “no primeiro tocaram apenas 12 guitarristas, no último eram já 50”. Dos nomes associados a estes espectáculos ficariam desde logo para a posteridade o actor Taborda, Rosa Damasceno, Ribeirinho e Josefa de Oliveira. Quanto a João Maria dos Anjos, que fora sapateiro em Alfama, chegaria a professor de guitarra do futuro rei D. Carlos, numa carreira e num percurso de fazer inveja a executantes como o Luís Velhinho, mais conhecido por ter uma casa de burros de aluguer no Poço do Borratém.
Estão, pois, instalados os interesses comerciais, e definitivamente adoptadas e agarradas, como matéria-prima, as palavras que rimam com guitarra: farra, garra, bizarra, samarra, e poucas mais. Bons poetas viriam, também, a aparecer ou a ser adoptados.
Mas o fado viria a ter que enfrentar outros géneros musicais no teatro de revista, num momento em que os discos já circulavam no mercado. O período pós-guerra (1914 - 1918) trazia similares estrangeiros ligados ao jazz-band, que muitas vezes eram preferidos pelos empresários, e que o público acolhia com agrado. A "Sociedade das Canções" aproveitaria para esgrimir contestação ao fado, mas este acabaria por resistir, sobreviver e afirmar-se. Consta que Hermínia Silva, intérprete e actriz, teria sido determinante neste processo, na Lisboa da época.
A par do teatro, embora com menor expressão, veio a ajuda do cinema. Data de 1896 o breve documentário "O Fado Batido", com a duração de 5 minutos. Em 1931 viria "A Severa", primeiro filme sonoro português, dirigido por Leitão de Barros. Em 1933 viria "A Canção de Lisboa", de Cottineli Telmo, com Vasco Santana, Beatriz Costa e António Silva. Outros filmes musicais viriam, embora tenhamos que ser cautelosos e separar as temáticas do fado e das marchas de Lisboa, estas tanto ao gosto do Estado Novo, a par do pseudo-folclore do grupo "Verde Gaio", criado pelo regime.
Com o passar dos anos foram surgindo as associações e os clubes de bairro, e os restaurantes ou casas de fado. Permanecem, na memória ou de facto, casas como a Adega Machado, a Márcia Condessa, a Adega Mesquita, o Senhor Vinho, o Faia, o Solar da Hermínia e muitos outros. Modernamente surgiram os pubs.
São determinantes o desenvolvimento das tecnologias que vão permitindo gravações de som e o aparecimento das estações de rádio, estas a partir de 1935.
Se o fado não se subordina aos interesses comerciais, há, pelo menos, uma forte relação de cumplicidade, e teremos que entendê-la. O tempo não parou e o fado-canção também não tardou a afirmar-se. Na década de 60 Carlos do Carmo (por exemplo) gravou diversos discos cantando fados com acompanhamento de orquestra dirigida pelo maestro Jorge Costa Pinto (Editora Tecla). Pela mesma época, Amália Rodrigues gravaria "Povo que Lavas no Rio" (de Pedro Homem de Mello) e outros fados com acompanhamento de viola e guitarra... e de saxofone (o famoso sax-tenor Don Byas).
Não pretendendo deixar, propriamente, excessivo juízo opinativo sobre o assunto, será temeridade falar do fado como a canção nacional. Foi (é?), sem dúvida, a canção popular urbana de Lisboa, sem esquecer a variante coimbrã, com o seu inquestionável valor histórico. De resto, parece-nos subsistir uma perceptível pobreza de letras, e frequente ausência de repertório próprio por parte dos seus intérpretes, por vezes (ou cada vez mais) habilmente ultrapassada pelos denominados "arranjos musicais".
Encerramos com uma transcrição do diplomata inglês Rodney Gallop, que foi grande estudioso da música popular portuguesa. Em 1937 escrevia assim: "Não posso considerar o fado senão como síntese, estilizada por séculos de lenta evolução, de todas as influências musicais que afectaram o povo de Lisboa". E acrescentava: "No ritmo sincopado pode discernir-se a influência de danças exóticas, da África ou do Brasil, populares em Lisboa desde que o batuque foi introduzido...".
Seja como for, é com saudade que recordamos um jantar com fados na noite lisboeta, há alguns anos, entre amigos. Adivinhamos que até a sábia e esclarecida Condessa de Ficalho diria que um fadinho em boa companhia vai sempre bem.



Imagem Tofa Pacote Açucar

Manuel Paula Maça

manoel.maza@gmail.com

(continua)

Etiquetas:

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O FADO DO FADO III

Fado: Cantiga Social e Estranhas Formas de Vida







Chorai, fadistas, chorai,
Que a Severa já morreu!
Foi o que Vimioso ouviu
Uma manhã, quando s'ergueu.

Por fado ou sina, coube à fadista Maria Severa Onofriana papel determinante no processo de relacionamento entre a baixa sociedade lisboeta e a nobreza e a burguesia. Esta "meio-soprano do conservatório do vício" notabilizou-se por ser uma mulher bonita, que batia, atirava e cantava o fado; empinava uns copázios de tinto, para matar tristezas; fumava o seu cigarro, não sabemos se em público, pois não seria vulgar nas mulheres da época; tinha os seus amores mais ou menos recatados ou escandalosos, complexos e atribulados.
Pinto de Carvalho diz que em 1850 já não era viva. Porém, actualmente tornou-se corrente a indicação de que nasceu em 1820 e que faleceu a 30 de Novembro de 1846. Teria expirado numa enfermaria de hospital, com tuberculose, embora a tradição atribua a sua morte a "uma indigestão de borrachos regados com boa pinga". Foi sepultada no cemitério do Alto de S. João, na vala comum. À data, sua mãe (a Barbuda) teria entre 56 e 58 anos. Mais tarde, no feminino, viria a ganhar fama de boa cantadora a Cesária de Alcântara, que seria engomadeira e teria vivido fora do mundo da prostituição.
São os amores com o Conde Vimioso que levam a Severa às festas da nobreza e da burguesia. Consta que lhe pôs casa na Rua da Bemposta e que vinha muitas vezes buscá-la de sege, chegando a levá-la para o seu palácio do Campo Grande; outra vez, e por exemplo, levou-a em adequada comitiva para uma tourada que o Marquês de Nisa ofereceu na sua quinta da Foz, em Salvaterra-de-Magos, pelo S. João de 1845.
É deste modo que o fado começa a entrar nos salões ou a fazer parte das festas à porta fechada ou nas praias da moda (zona de Sintra e Ericeira), com adesão da burguesia e da nobreza. Pinto de Carvalho diz que entre 1868 e 1869 surgia a nova fase do fado: aristocrática e literária. O Marquês de Castelo-Melhor tocava guitarra e cantava o fado desde os seus tempos de estudante em Coimbra; convivia facilmente com outras classes sociais; também apreciava o toureio, sendo um ginetário de primeira ordem e sustentáculo da antiga escola portuguesa de cavalaria, como a entendia o Marquês de Marialva. D. José de Almada e Lencastre (escritor e jornalista) teria sido bom cantador de fado. Do próprio João de Deus chega-nos a indicação de que teria sido tocador de banza, cantor e poeta, enquanto estudante em Coimbra. José Maria Anchieta (futuro explorador africano) também se teria celebrizado no tocar da guitarra em terras do Mondego. Entre executantes ou amadores encontramos mais nomes: Conde de Oeiras; Dr. José Dória, tocador de viola em Coimbra; Conde da Anadia, distinto amador do fado; Marquês de Valença, distinto pianista, pai do Conde de Vimioso. A Condessa de Ficalho também ficou descrita como grande apreciadora do fadinho.


O Guitarrista




Importará dizer que a política do Movimento Regenerador, chamada dos “melhoramentos materiais”, instaurada em 1851, também teria dado o seu contributo à lenta mudança de costumes e de mentalidades, vindo também a fornecer novos temas ao fado.
Assim e aqui começaram também a ser convidados ou contratados para festas tocadores de banza, viola e guitarra, iniciando-se um percurso que, volvidos alguns anos, haveria de levar à profissionalização de músicos e cantadores, não esquecendo os mestres do ensino da viola e da guitarra. Lá iremos, a propósito do teatro, dos espectáculos para o grande público e das gravações de discos para gramofone. Sim, porque o cinema viria mais tarde e a rádio apareceria apenas em 1935.
Mas se, aparentemente ou de facto, o fado se elevava gradualmente em termos de estatuto social, o mesmo não seria válido nem automático para tocadores e cantadores, apesar de muitos terem embandeirado em arco no seu aspecto exterior, com novas poses e novas vestimentas, como as “jalecas à polca”, nem sempre isentas de algum ridículo e a alimentar rivalidades. Um autor da época escrevia: “Desde que os fidalgos e janotas gostam de ser fadistas, estão os fadistas a querer parecer janotas” (8).
De facto rivalizam, por assim dizer, a antiga e a nova fase do fado, e algumas letras chegam a reflectir o saudosismo do fado popular. E no registo discográfico da recolha do grupo Sons do Lena (7) encontramos o Fado Marcado, de que retiramos duas quadras:

Ó fado que foste fado
Ó fado que já não és
Ó fado que já viraste
Da cabeça para os pés

Há quem diga que o fado
Só nasceu para cantar
Quem o diz está enganado
Já vi o fado bailar.

Porventura, deixava-se aqui expresso o saudosismo da dança do fado. Curiosamente, ainda encontramos na obra de Pinto de Carvalho mais esta quadra:

Ó fado, que foste fado,
Ó fado, que já não és,
O fadinho invade tudo
Da cabeça até aos pés.

Discretamente, embora, o fado tornava-se mais literário, mais artístico e perdia muito do seu carácter popular. Popular urbano, acrescentaremos, porque a cantiga popular rústica ou rural tem outra génese, outras raízes e outra riqueza intrínseca.
Finalmente, consta que na noite de 3 de Maio de 1873 (8) houve no Casino Lisbonense o primeiro concerto público de guitarras, em que chegaram a interpretar-se trechos de óperas famosas. Este evento adquire particular significado se recordarmos que foi esta a época das famosas Conferências Democráticas do Casino, no mesmo local (antiga Rua da Abegoaria, actual Largo Rafael Bordalo Pinheiro), onde pontificaram homens como Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, entre muitos outros que discutiam filosofia, política, literatura e artes, em geral. É por isso que se fala da “geração de 70” e de “Os Vencidos da Vida”, mas o assunto não é para aqui.

(continua)

Manuel Paula Maça
manoel.maza@gmail.com


Etiquetas:

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O FADO DO FADO II





2 Sentimentalidade Vadia: Fado, Vinho e Navalhas



Temos, então, uma Lisboa com uma população flutuante, socialmente complexa e heterogénea, a todos os níveis. São as migrações internas, em particular dos meios rurais; são gentes oriundas da Galiza, sobretudo homens, sendo frequentes as alusões a galegos; mas é, principalmente, a pluralidade étnica e cultural que regular ou massivamente aporta do Brasil, cuja independência ocorre em 1823. Neste emaranhado de gentes, uma nota particular para a designação curiosa de "ovarinas", dada às mulheres provenientes de Ovar, que caminhariam descalças, de canastra à cabeça, lançando os seus pregões enquanto vendiam o pescado pelas ruas. Assim teriam surgido e ficado para a posteridade as típicas "varinas", que passariam a não ser apenas as (mulheres) de Ovar: "é varina, usa chinela", diz o fado.
Mas quais, como e quando se teriam misturado, os ingredientes de identificação e caracterização da "cantiga de viela", que viria a seduzir a própria nobreza, a ligar-se aos touros, a subir as escadarias dos salões, a instalar-se e a desenvolver-se (diferentemente, embora) em Coimbra, chegando aos nossos dias?
As tabernas e os prostíbulos iam alastrando, a par de uma vida dissoluta por parte de algumas franjas da sociedade lisboeta. Os instrumentos de corda dedilhada vinham conquistando adeptos dedicados desde o século XVII, em aliança com danças e cantigas, com respeitáveis navalhas ao lado ou na liga. Consta que, nas ruas, era costume os cegos tocarem viola ou guitarra enquanto lançavam pregões ou davam conta das ordens da polícia ou de outras disposições legais, a par de alguma poesia (ou literatura) de cordel, incluindo almanaques e orações para os mais pios e diversos fins. A crítica social e a devassa de muitas vidas privadas também serviam de tema, com frequentes variações e arranjos sem dó nem piedade em matéria de desacato e pancadaria. Tornaram-se usuais expressões como "bater o fado" e "canto a atirar", neste último caso sugerindo desgarrada ou desafio (6), onde viriam a destacar-se executantes exímias como a mãe de Maria Severa, a quem a pilosidade acentuada conferiu a alcunha de "Barbuda". E a Barbuda foi justamente a proprietária de uma das três tabernas que existiram na antiga Rua da Madragoa (6), que em 1863 passou a chamar-se Rua Vicente Borga, cuja designação ainda hoje se mantém. Ali se fez "escola"; ali, muitas vezes, Maria Severa cantou e bateu o fado, debatendo-se com credenciados praticantes da modalidade e afins, como Manozinho, Mesquita e Manuel Botas. As nossas fontes dão-nos conta de sessões que se arrastariam por dois ou três dias e noites.

Se o Padre Santo soubesse
O gosto que o fado tem,
Viera de Roma aqui
Bater o fado também.

Mas o "Padre Santo" não veio. Também não foi para "bater o fado" que em 30 de Novembro de 1807, sob o comando de Juntot, as tropas francesas entraram em Lisboa. Parece, porém, que os já referidos executantes ambulantes de viola e de guitarra (cegos, muitas vezes), passaram a incluir nos seus repertórios a divulgação das proclamações do governo, as cartas oficiais dos generais, as vitórias dos aliados e as derrotas dos invasores. Vozes sonoras acompanhadas de pinga continuavam, pois, a combinar com os acordes das violas e das guitarras, e talvez já seja perceptível uma espécie de fio condutor a ligar e envolver um conjunto de elementos.
É, ainda, Pinto de Carvalho que nos diz que em 1824 (um ano depois da independência do Brasil, note-se) a licenciosidade das cantigas destes guitarristas era tal que a polícia as achava "dignas de correctivo", por "indecentíssimas e obscenas" e com "trejeitos escandalosos". É particularmente visada a cantiga Negro Melro, de que seleccionamos duas quadras de evidente subtileza (7):

O ladrão do negro melro
Toda a noite assobiou,
Lá por essa madrugada
Bateu as asas, voou.

O ladrão do negro melro
Onde foi fazer o ninho!
Lá p'rós lados de Leiria
No mais alto pinheirinho.

A bibliografia disponível deixa ora lacunas, ora prudentes reservas em torno da evolução coreográfica e musical de géneros anteriores ao fado, com ele coincidentes ou nele incorporados. Nas ruas e tabernas, imperavam a fofa, o oitavado, as cheganças, o fandango e o lundu, normalmente acompanhadas por instrumentos de cordas e dançadas com o atrevido frenesim sensual da umbigada, de que poderão ter ficado reminiscências no bolero espanhol. Diversos autores registam traços comuns entre géneros musicais de origem afro-brasileira, com alguma expressão na Andaluzia espanhola, de que são exemplo a seguidilla e o "Fandango de Sevilha". Este, segundo um folheto que na época circulou em Lisboa, era "mesinha especial para divertir melancólicos" (8). O mesmo documento refere-se à Fofa como "som do Brasil com propriedade para vodas e galhofas". Por influência da Igreja Católica, o Rei D. José teria proibido as cheganças, como se depreende da quadra que ficou:


Já se não cantam cheganças,
Que não quer o nosso rei,
Porque lhe diz Frei Gaspar
Que é coisa contra a lei.

Provavelmente, houve aqui mãozinha de Frei Gaspar da Encarnação, a quem Camilo Castelo Branco, respeitosamente, chamou "uma santa besta".
Poderemos, finalmente, questionar-nos sobre o Lundu (ou Lundum). Em 1791 esteve em Lisboa um famoso tocador de viola chamado Angelo Talassi, acolhido pela melhor roda, exímio e credenciado executante de lundus e de modinhas. Pouco depois notabilizava-se Francisco Vidal Negreiros, com idênticos atributos e méritos na matéria (7). Fica já o registo opinativo segundo o qual "modinha e lundu combinam-se provavelmente, no complexo de antecedentes directos do fado, designação mais generalizada da cantiga de viela a partir de meados do século XIX" (5), pois a ambos os géneros é atribuída génese afro-brasileira.
José Ramos Tinhorão (8) também situa no Brasil de finais do século XVIII o aparecimento da dança do fado, como fusão dos já referidos géneros que recorriam aos movimentos coreográficos da umbigada, nomeadamente a fofa, o fandango e o lundu. Não obstante as preocupações de autoridades militares e religiosas, o lundu acabaria por resistir e passar do Brasil para Lisboa, apesar do rótulo de "diabólico folguedo". De algum modo, e de ambos os lados do Atlântico, a própria população branca se teria apropriado das "danças de negros", pois a promiscuidade social favorecia um certo enriquecimento cultural no campo das diversões, uma vez mais por intercâmbio e assimilação de costumes.
Em 1821 D. João VI e a sua corte abandonam o Brasil e regressam a Lisboa. Vêm milhares de nobres e funcionários, com seus criados ou serviçais, muitos destes de origem africana. Em 1823 ocorre a independência.
Em 1840 Lisboa teria à volta de 155.000 habitantes, e aquando do censo de 1864 este número estaria nos 190.000. Porém, estes números têm uma importância relativa e não deverão ser olhados com rigor, pois muita gente não estaria recenseada ou apenas temporariamente viveria em Lisboa, fazendo parte da tal "população flutuante".
Aparentemente, é também após meados do século XIX que o fado entra numa nova fase: mais definida, aristocrática e literária ou letrada, por assim dizer. E é pelas mãos da nobreza que entra nos salões e conquista lugar nas suas festas e nas esperas de touros.

(continua)


Manuel Paula Maça

manoel.maza@gmail.com


(5) História da Música - Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro, Colecção Sínteses da Cultura Portuguesa, 1991, Imprensa Nacional - Casa da Moeda.
(6) História do Fado, Pinto de Carvalho (1903), Publicações D. Quixote, 1982.
(7) Encontramos a cantiga O Melro no repertório do grupo Sons do Lena, da Batalha, gravado em C D. É uma recolha popular, com uma letra atrevida que se enquadra.
(8) Fado - Dança do Brasil, Cantar de Lisboa - O Fim de um Mito, José Ramos Tinhorão, Editorial Caminho, 1994.




Etiquetas:

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O FADO DO FADO I













Meus livros, meus discos

O Fado – José Malhoa


O FADO, SUBSÍDIOS HISTÓRICOS

Enquanto Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (Janeiro de 2002 – Julho de 2004), Pedro Santana Lopes, decidiu propor a candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade junto da UNESCO, face ao seu valor e significado «como obra identificadora da cidade, o seu enraizamento profundo na tradição e história cultural do país, a sua importância como fonte de inspiração e de troca inter-cultural entre povos e comunidades e a sua contemporaneidade» (1).
O processo de candidatura desenvolveu-se lentamente, desde 2004, adquiriu novo fôlego e está em andamento. Destaque para o Museu do Fado, instituído entretanto.
Como que aprontando as malas de viagem, na qualidade de embaixadores da candidatura, estiveram a cantora-fadista Mariza e Carlos do Carmo. Ela, senhora de uma bonita voz, a quem muitas plateias se têm rendido, em Portugal e no estrangeiro; ele, um grande artista, com créditos firmados e afirmados, suficientemente dotado de boa opinião sobre si próprio, sendo inegável que canta bem.
Enquanto fenómeno musical ou produto de mercado, o fado continua por aí: vem até nós, e é recebido nos serões vadios das nossas aldeias; arrasta-se em incursões perante imprevisíveis plateias urbanas; ou tem lugar marcado em bares e restaurantes das grandes cidades, Lisboa à cabeça. Enquanto manifestação cultural, tem motivado interesses e curiosidades em torno da sua génese obscura e da sua história complexa e acidentada. Uns dizem que é "a expressão da alma portuguesa"; outros chamaram-lhe a "canção nacional", particularmente durante o Estado Novo; outros, ainda, conotaram-no com os aspectos marginais da nossa sociedade lisboeta; Fernando Lopes Graça (2) referiu-se ao “execrando fado, produto de corrupção da sensibilidade artística e moral, quando não indústria organizada e altamente lucrativa (...)”.
Eis, então, alguns ingredientes e o pretexto para uma abordagem com que não pretendemos mais que deixar uma modesta achega e algumas interrogações para o estudo da matéria, esperando e desejando que outros contributos apareçam.
Devido à extensão, iremos optar pelo desenvolvimento em capítulos.

1 A Noite dos Tempos
Ao longo da sua história, Portugal foi palco de um cruzamento de culturas, a vários níveis. Primeiro, teriam sido os povos que o habitaram a deixar marcas e traços; depois vieram os mouros, que terão permanecido à volta de Lisboa, mesmo após o domínio cristão; mais tarde, foram as viagens marítimas, assumindo particular importância o fluxo humano e a multiplicidade de contactos com as colónias africanas e com o Brasil, onde se sedimentaram marcas culturais decorrentes da escravatura e de fenómenos migratórios mais alargados, enquanto as sociedades se foram desenvolvendo e estratificando.
A alguns estudiosos não passa despercebida a tradição da poesia medieval galaico-portuguesa, nuns casos protagonizadas por mulheres (as cantigas de amigo), noutros casos por homens (as cantigas de amor e as cantigas de escárnio e de maldizer). Diversos tipos de trovadores, jograis, menestréis e pelotiqueiros andariam de terra em terra, sendo natural que a tal lírica medieval fosse cantada e dançada ao som de instrumentos, passando por um gradual processo degenerativo e, naturalmente, evolutivo.
A matéria é complexa, pelo que a referência fácil e simplista à tradição pode ser ousadia ou temeridade. Pois... que tradição?
Porque não se implantou o fado nas zonas do galaico-português, nos territórios da lírica medieval, no Norte de Portugal e na Galiza, onde são ainda perceptíveis muitos traços culturais e musicais com características comuns? Qual a zona da planície alentejana onde se desenvolveu e afirmou? Então, onde está a tal tradição alicerçada na herança e na influência árabe, passe a afirmação atrevida de que o fado é de origem provençal e que "sofreu a influência melódico-poética árabe e, ao longo dos séculos, ganhou características mais definidas (...)", como achamos escrito (3). É verdade que o Algarve e o sul de Espanha foram os últimos redutos árabes na Península Ibérica, mas parece-nos que, por aí, do fado nem sinais. Podemos e devemos interrogar-nos sobre a particular relação de Portugal com o Brasil, nesse enorme caudal de embarcações e de gentes, e eventuais influências de ritmos africanos de que eram portadores os escravos, sujeitos, estes, a um processo de aculturação e miscigenação, com cruzamentos raciais. Chegaram alguns sinais a Lisboa? Que aconteceu ao Lundu?
Também é importante a questão do desenvolvimento e adopção dos instrumentos musicais que levaram à junção da viola e da guitarra ao fado. João de Freitas Branco (4) situa na 1ª dinastia uma pequena indústria de construção de instrumentos musicais; os “violeiros” e outros artífices teriam os seus estabelecimentos nas mesmas ruas, e muitos foram os instrumentos de cordas criados e adaptados ao longo dos séculos, conforme os gostos, os costumes, a classe social e as bolsas: a cítara, a harpa, o alaúde, o bandolim, o cavaquinho, o violino, o saltério, a rabeca e, até, o berimbau. Em "O Primo Basílio", de Eça de Queirós, o famoso Conselheiro Acácio, enquanto jovem, tocou rabeca na Filarmónica da Rua de S. José, em Lisboa (coisa de que hoje poucos políticos seriam capazes)! Não esqueceremos, já agora, o misto de história e fantasia segundo o qual o exército de D. Sebastião teria levado 10.000 guitarras para a batalha de Alcácer Quibir (Ksar-el-Kebir), como que conferindo nobreza ao instrumento, que desejaria associar à vitória sonhada. De resto, facilmente se constata a existência de uma grande diversidade de guitarras. Por fim, e como que a recomendar atenção na análise, deparamo-nos com o facto de alguns instrumentos de cordas dedilhadas terem andado pelos salões, até saltarem para as ruas, tabernas e prostíbulos, misturando-se com outros mais populares ou popularizados, passando pela "banza", a que alguns estudiosos associam o termo "banzé", que também foi nome de dança de negros.
Finalmente, registe-se que era também ao som de cordas dedilhadas ou de cordas percutidas (cravo, clavicórdio, pianoforte e piano) que assentava nos salões a canção sentimental com a designação de modinha, de que Sir William Beckford deixaria escrito: "São lânguidos e interrompidos compassos, como se o fôlego nos faltasse por excesso de enlevo e a alma anelasse despedir-se-nos do corpo para se unir àquilo que mais queremos (...). Sou escravo das modinhas, e quando me lembro delas não posso com a ideia de abandonar Portugal" (5). Se nos é consentida uma incursão no ambiente do romance "O Crime do Padre Amaro", de Eça de Queirós, lá temos os serões em casa da S. Joaneira, na então Rua da Misericórdia, em Leiria, animados pela guitarra e pela voz de Artur Couceiro, que "era a voz mais bonita da cidade para modinhas".
O tecido social a que, normalmente, se associa o aparecimento do fado de Lisboa são as classes baixas e alguma marginalidade: operários, estivadores, marinheiros, gente simples ligada ao mar e ao rio, através das viagens marítimas ou das actividades portuárias ou piscatórias; a vida seria dura e difícil, levando a profundas e frequentes incursões na marginalidade e na mendicidade. Famílias numerosas viveriam na promiscuidade, em condições precárias que fomentavam a vida licenciosa e dissoluta, amontoando-se em casas abandonadas pelas classes mais endinheiradas após o terramoto de 1755, sobretudo (mas não apenas) nos bairros de Alfama e Mouraria. Mulheres, vinho e navalhas parecem ter-se juntado como ingredientes, a que mais tarde se juntaram os touros, com alguma nobreza a relacionar-se com a expressão vocal e musical, ou com muito do que a ela se associava.
Quanto às letras, parece ter-se mantido no fado de Lisboa a crítica social jocosa, objectiva e descarada, agressiva muitas vezes (e lá estaria a navalha para o ajuste de contas), ou (aí sim, ainda ao jeito medieval), as coisas do amor, do destino, a dor da ausência. E a saudade! Cantava-se nas ruas e nas tabernas, muitas vezes à desgarrada, a um ritmo que facilitava o género e dava tempo ao improviso das rimas.
Em termos de mímica e de dança, colhemos a ideia de que os movimentos sensuais da umbigada não teriam escapado ao processo evolutivo, por assimilação, combinados com as músicas e com as letras. Pinto de Carvalho (6) fala em "requebros obscenos" e em duas espécies de dança: bater o fado e dançar o fado. Adiantamos já, por oportuna, uma reflexão de Mantegazza, que a associa a expressão dos afectos aos movimentos físicos: "a alegria é centrífuga, enquanto que a dor é centrípeta" (6).
Situar exactamente o aparecimento do fado no tempo não é, mesmo assim, questão de todo pacífica. Porém, a pesquisa efectuada, as fontes bibliográficas e as referências (ou a sua ausência) na literatura inclinam-nos a sustentar que o fado se terá afirmado em Lisboa ao longo do século XIX. Teria sido cantado noutras zonas do país: no Porto, no Ribatejo e nas Beiras, sem se fixar. Viria, porém, a desenvolver-se em Coimbra, em forma mais erudita ou em balada, ao som das violas e guitarras de estudantes, com vozes de tenor ou barítono. Lá iremos.

Manuel Paula Maça

(continua)

manoel.maza@gmail.com

(1) http//www.tsf.pt - 5 de Fevereiro 2004.
(2) A Canção Popular Portuguesa, Colecção Saber, Publicações Europa-América, Lisboa 1974.
(3) Fado - Origens Líricas e Motivação Poética, Mascarenhas Barreto, versão Bilingue (Inglês e Português), Editorial Aster (1970?).
(4) História da Música Portuguesa, 3ª Edição, Publicações Europa América, 1995.
(5) História da Música - Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro, Colecção Sínteses da Cultura Portuguesa, 1991, Imprensa Nacional - Casa da Moeda.
(6) História do Fado, Pinto de Carvalho (1903), Publicações D. Quixote, 1982.

Etiquetas: ,