O CABELEIREIRO DO SALÃO PARIS
O CABELEIREIRO DO SALÃO PARIS
(Memórias)
"Se fosse fosse um bocadinho mais cedo
ia ver o mar à Praia Grande".
António Lobo Antunes
A chuva desta noite de Sexta para Sábado transbordou para as estradas, enchendo-as de ondas suaves; as folhas amarelas do Outono plantado à beira da estrada da Figueira da Foz bailavam no negro do alcatrão.
Os reflexos dos olhos eléctricos dos automóveis podiam ser fachos de farol de mar a alumiar sempre em frente em vez de andar à volta, ou então poderiam ser grandes itinerários luminosos de fósforos a riscar em caixas gigantescas.
Com a luz amarela dos faróis do automóvel, a chuva era, pois, como que o conjunto harmónico das colunas desprendidas do céu dos poemas do Carlos Eugénio, ou então as cordas dos instrumentos da Catedral da Angústia do António Victorino de Almeida. E tudo com sabor a Outono! E tudo com a gravidade de quando é de facto Outono – sendo Outono por dentro e por fora. E à volta também.
À medida em que se avança pela noite, o movimento de vaivém das escovas dos limpos vidros lembram braços possantes de nadador; ou então remos de um barco batendo com precisão na água, numa cadência muito certa e sincopada. Momentaneamente parece que navegamos nesse mar que se desprendeu do céu ou que saltou para a estrada; vamos num barco. E, assim, as luzes dos outros automóveis em movimento, enquanto faróis marítimos, estão bem orientadas: em frente, andando sempre. Um pouco como a vida.
E ocorre a subida das Cortes para a Barreira, umas horas atrás, com a chuva a filtrar a luz dos candeeiros dependurados no escuro, à beira da estrada em ziguezague. Do lado esquerdo, uma casa singular, mesmo ao lado da noite, numa encosta onde os sonhos vão desembocar ao rio: é a casa do cabeleireiro (sim, cabeleireiro) do Salão Paris, poeta e sonhador, engenheiro naval de Fernando Pessoa, hábil artífice da tesoura e da navalha, contando histórias para distrair os clientes, ou distraindo-se com a solidariedade de ouvir histórias dos clientes! Um pouco como o velho Vicente da Barbearia Lis, há muitos anos, na Avenida Almirante Reis, em Lisboa, mesmo à porta do Metropolitano no Intendente! Dois artífices de poemas de ver ao espelho na cabeça das pessoas: acha que rima bem assim? Quer mais uma sílaba métrica? Poemas feitos com régua e compasso, ou com maquinetas mais complicadas, fixados com verniz contra a corrosão atmosférica (enquanto não o há para a corrosão mental).
É que a casa do cabeleireiro do Salão Paris, na estrada da Barreira, é, também, um pouco de manufactura mental altamente susceptível de interpretações metafísicas: uma casa que lembra uma cabeça penteada com risco ao lado. O telhado negro são duas madeixas abundantes de cabelo, com risco feito na ponta da varanda, onde a calha da água faz um recorte; assim, as faixas de preto na escada exterior oblíqua, de alto a baixo, são franjas despenteadas a cair geometricamente pela testa, quase por cima dos olhos que são as janelas.
E todo o cenário desta noite é um extraordinário povoamento – é o título do livro do Carlos de Oliveira "Finisterra, Povoamento e Paisagem". Cá está!... É um cenário completo! "Finisterra", cabo de mar feito equador de convenções sociais, separação de hemisférios e de latitudes (ou lati-atitudes) mentais diametralmente opostas (sim, porque o Cabo Finisterra é muito mais que a metafísica do Álvaro de Campos e dos compêndios de Geografia).
"Paisagem". Existe! É a noite; a chuva; o mar no negro do alcatrão; o velho Vicente de há muitos anos, na barbearia da Avenida Almirante Reis; a casa do cabeleireiro do Salão Paris em forma de penteado com risco ao lado... e uma saudade muito grande!
E uma sensação de que quando o perto é longe, o longe é um pesadelo terrível, um itinerário de circum-navegação em direcção oposta a nós próprios.
"Povoamento". Completo o título do Carlos de Oliveira!... Uma noite povoada, porque o nada é alguma coisa.
"Finisterra, Povoamento e Paisagem". Um pouco como no Teixeira de Pascoais, à maneira de solidariedade: um povoamento de ausências!
5.11.83
Os reflexos dos olhos eléctricos dos automóveis podiam ser fachos de farol de mar a alumiar sempre em frente em vez de andar à volta, ou então poderiam ser grandes itinerários luminosos de fósforos a riscar em caixas gigantescas.
Com a luz amarela dos faróis do automóvel, a chuva era, pois, como que o conjunto harmónico das colunas desprendidas do céu dos poemas do Carlos Eugénio, ou então as cordas dos instrumentos da Catedral da Angústia do António Victorino de Almeida. E tudo com sabor a Outono! E tudo com a gravidade de quando é de facto Outono – sendo Outono por dentro e por fora. E à volta também.
À medida em que se avança pela noite, o movimento de vaivém das escovas dos limpos vidros lembram braços possantes de nadador; ou então remos de um barco batendo com precisão na água, numa cadência muito certa e sincopada. Momentaneamente parece que navegamos nesse mar que se desprendeu do céu ou que saltou para a estrada; vamos num barco. E, assim, as luzes dos outros automóveis em movimento, enquanto faróis marítimos, estão bem orientadas: em frente, andando sempre. Um pouco como a vida.
E ocorre a subida das Cortes para a Barreira, umas horas atrás, com a chuva a filtrar a luz dos candeeiros dependurados no escuro, à beira da estrada em ziguezague. Do lado esquerdo, uma casa singular, mesmo ao lado da noite, numa encosta onde os sonhos vão desembocar ao rio: é a casa do cabeleireiro (sim, cabeleireiro) do Salão Paris, poeta e sonhador, engenheiro naval de Fernando Pessoa, hábil artífice da tesoura e da navalha, contando histórias para distrair os clientes, ou distraindo-se com a solidariedade de ouvir histórias dos clientes! Um pouco como o velho Vicente da Barbearia Lis, há muitos anos, na Avenida Almirante Reis, em Lisboa, mesmo à porta do Metropolitano no Intendente! Dois artífices de poemas de ver ao espelho na cabeça das pessoas: acha que rima bem assim? Quer mais uma sílaba métrica? Poemas feitos com régua e compasso, ou com maquinetas mais complicadas, fixados com verniz contra a corrosão atmosférica (enquanto não o há para a corrosão mental).
É que a casa do cabeleireiro do Salão Paris, na estrada da Barreira, é, também, um pouco de manufactura mental altamente susceptível de interpretações metafísicas: uma casa que lembra uma cabeça penteada com risco ao lado. O telhado negro são duas madeixas abundantes de cabelo, com risco feito na ponta da varanda, onde a calha da água faz um recorte; assim, as faixas de preto na escada exterior oblíqua, de alto a baixo, são franjas despenteadas a cair geometricamente pela testa, quase por cima dos olhos que são as janelas.
E todo o cenário desta noite é um extraordinário povoamento – é o título do livro do Carlos de Oliveira "Finisterra, Povoamento e Paisagem". Cá está!... É um cenário completo! "Finisterra", cabo de mar feito equador de convenções sociais, separação de hemisférios e de latitudes (ou lati-atitudes) mentais diametralmente opostas (sim, porque o Cabo Finisterra é muito mais que a metafísica do Álvaro de Campos e dos compêndios de Geografia).
"Paisagem". Existe! É a noite; a chuva; o mar no negro do alcatrão; o velho Vicente de há muitos anos, na barbearia da Avenida Almirante Reis; a casa do cabeleireiro do Salão Paris em forma de penteado com risco ao lado... e uma saudade muito grande!
E uma sensação de que quando o perto é longe, o longe é um pesadelo terrível, um itinerário de circum-navegação em direcção oposta a nós próprios.
"Povoamento". Completo o título do Carlos de Oliveira!... Uma noite povoada, porque o nada é alguma coisa.
"Finisterra, Povoamento e Paisagem". Um pouco como no Teixeira de Pascoais, à maneira de solidariedade: um povoamento de ausências!
5.11.83
Etiquetas: Salão Paris. Carlos Oliveira. Alvaro de Campos. Finisterra.
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