domingo, 11 de setembro de 2011

O CABELEIREIRO DO SALÃO PARIS



O CABELEIREIRO DO SALÃO PARIS


(Memórias)







"Se fosse fosse um bocadinho mais cedo
ia ver o mar à Praia Grande".

António Lobo Antunes





A chuva desta noite de Sexta para Sábado transbordou para as estradas, enchendo-as de ondas suaves; as folhas amarelas do Outono plantado à beira da estrada da Figueira da Foz bailavam no negro do alcatrão.
Os reflexos dos olhos eléctricos dos automóveis podiam ser fachos de farol de mar a alumiar sempre em frente em vez de andar à volta, ou então poderiam ser grandes itinerários luminosos de fósforos a riscar em caixas gigantescas.
Com a luz amarela dos faróis do automóvel, a chuva era, pois, como que o conjunto harmónico das colunas desprendidas do céu dos poemas do Carlos Eugénio, ou então as cordas dos instrumentos da Catedral da Angústia do António Victorino de Almeida. E tudo com sabor a Outono! E tudo com a gravidade de quando é de facto Outono – sendo Outono por dentro e por fora. E à volta também.
À medida em que se avança pela noite, o movimento de vaivém das escovas dos limpos vidros lembram braços possantes de nadador; ou então remos de um barco batendo com precisão na água, numa cadência muito certa e sincopada. Momentaneamente parece que navegamos nesse mar que se desprendeu do céu ou que saltou para a estrada; vamos num barco. E, assim, as luzes dos outros automóveis em movimento, enquanto faróis marítimos, estão bem orientadas: em frente, andando sempre. Um pouco como a vida.
E ocorre a subida das Cortes para a Barreira, umas horas atrás, com a chuva a filtrar a luz dos candeeiros dependurados no escuro, à beira da estrada em ziguezague. Do lado esquerdo, uma casa singular, mesmo ao lado da noite, numa encosta onde os sonhos vão desembocar ao rio: é a casa do cabeleireiro (sim, cabeleireiro) do Salão Paris, poeta e sonhador, engenheiro naval de Fernando Pessoa, hábil artífice da tesoura e da navalha, contando histórias para distrair os clientes, ou distraindo-se com a solidariedade de ouvir histórias dos clientes! Um pouco como o velho Vicente da Barbearia Lis, há muitos anos, na Avenida Almirante Reis, em Lisboa, mesmo à porta do Metropolitano no Intendente! Dois artífices de poemas de ver ao espelho na cabeça das pessoas: acha que rima bem assim? Quer mais uma sílaba métrica? Poemas feitos com régua e compasso, ou com maquinetas mais complicadas, fixados com verniz contra a corrosão atmosférica (enquanto não o há para a corrosão mental).
É que a casa do cabeleireiro do Salão Paris, na estrada da Barreira, é, também, um pouco de manufactura mental altamente susceptível de interpretações metafísicas: uma casa que lembra uma cabeça penteada com risco ao lado. O telhado negro são duas madeixas abundantes de cabelo, com risco feito na ponta da varanda, onde a calha da água faz um recorte; assim, as faixas de preto na escada exterior oblíqua, de alto a baixo, são franjas despenteadas a cair geometricamente pela testa, quase por cima dos olhos que são as janelas.
E todo o cenário desta noite é um extraordinário povoamento – é o título do livro do Carlos de Oliveira "Finisterra, Povoamento e Paisagem". Cá está!... É um cenário completo! "Finisterra", cabo de mar feito equador de convenções sociais, separação de hemisférios e de latitudes (ou lati-atitudes) mentais diametralmente opostas (sim, porque o Cabo Finisterra é muito mais que a metafísica do Álvaro de Campos e dos compêndios de Geografia).
"Paisagem". Existe! É a noite; a chuva; o mar no negro do alcatrão; o velho Vicente de há muitos anos, na barbearia da Avenida Almirante Reis; a casa do cabeleireiro do Salão Paris em forma de penteado com risco ao lado... e uma saudade muito grande!
E uma sensação de que quando o perto é longe, o longe é um pesadelo terrível, um itinerário de circum-navegação em direcção oposta a nós próprios.
"Povoamento". Completo o título do Carlos de Oliveira!... Uma noite povoada, porque o nada é alguma coisa.
"Finisterra, Povoamento e Paisagem". Um pouco como no Teixeira de Pascoais, à maneira de solidariedade: um povoamento de ausências!

5.11.83

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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

FARINELLI: A IMORTALIDADE DE UM CASTRADO


FARINELLI OU A IMORTALIDADE DE UM CASTRADO

Em 2002 decorreu no Centro Cultural de Belém a VI Temporada de Concertos da Portugal Telecom, iniciada com uma série de obras evocativas da memória de Farinelli, o mais célebre castrado do século XVIII.
A iniciativa trouxe-nos algumas das mais belas melodias que o sopranista cantou nos palcos de ópera da Europa e na corte de Filipe V de Espanha. Mas não apenas.
Na ocasião, aproveitamos o pretexto para tentar abordar um assunto histórico de que pouco se fala, espécie de tabu incómodo ou maçador ante o qual os defensores da moralidade e da dignidade humana (tão lestos, às vezes!) parecem ter andado, no mínimo, distraídos, com destaque para a Igreja Católica.
É o texto dessa abordagem que decidimos inserir, porque a História não pode apagar-se.


Retrato a óleo sobre tela, por Jacopo Amigoni


UM CASTRADO AO SERVIÇO DE FILIPE V DE ESPANHA

Imagine o leitor que a altas horas da noite é acometido de insónias. Acontece ao comum dos mortais! Em alternativa à desgastante e infindável contagem de horas e minutos, pode optar por ler uma revista ou um livro, ou ligar o rádio e ouvir uma música... ou, até, rezar uma oraçãozinha para apaziguar o espírito.
As coisas não foram sempre assim, pois a tecnologia evolui e a estratificação das classes e os hábitos sociais vão-se modelando. Filipe V de Espanha não tinha rádio, por isso chamava o castrado Farinelli, cantor da corte, que faria ecoar a sua voz melodiosa de sopranista por alas e corredores do palácio real, noite ou madrugada adiante.
A castração tem raízes culturais, que divergem nos tempos e nas motivações. Mas foi a Europa culta e civilizada (a "civilização superior" de que falou Silvio Berlusconni), que fez da castração de crianças do sexo masculino uma prática hedionda e aviltante. As mutações morfológicas e psíquicas da criança castrada, eram numerosas, e o objectivo era impedir o desenvolvimento normal da voz, que seria trabalhada e adaptada à dignidade do cântico religioso. Os palcos da ópera viriam depois... ou não!
De seu verdadeiro nome Carlo Broschi, Farinelli viveu entre 1705 e 1782. Oriundo de uma família da pequena nobreza da Apúlia, teria sido castrado pelo próprio pai, entre os 7 e os 8 anos de idade. Estudou em Nápoles, onde começou a afirmar-se aos 15 anos, nos cânticos religiosos. Aos 25 anos era reclamado e disputado por cortes e teatros da Europa. Os livros dizem que tinha tudo (ou quase) a seu favor: talento, beleza física, formação moral, inteligência, humildade, altruísmo. Conheceu o êxito em Londres, Viena, Paris, e ficou conhecido como o “divino Farinelli” e “o maior castrado do universo”.
Aos 32 anos Farinelli acedeu ao convite de Isabel Farnésio, rainha de Espanha, convicta de que a voz do sopranista (castrado) conseguiria aliviar as crises de neurastenia e agressividade do rei Filipe V, que não seria parco em desancar com afinco nos cabedais de sua extremosa e real esposa. O primeiro encontro de Filipe V com Farinelli deu-se numa noite de Agosto de 1737, e os resultados excederam as expectativas. Ficaram amigos e confidentes.
Farinelli ficaria na corte de Espanha durante 22 anos; mesmo depois da morte de Filipe. Aí chegou a conviver com Maria Bárbara de Bragança, filha de D. João V de Portugal, dada em casamento ao futuro Rei Fernando VI. A infanta Maria Bárbara, a “bexigosa”, é, aliás, caricaturada por José Saramago em “O Memorial do Convento”, mormente enquanto discípula de Domenico Scarlati, na ocasião também remetido para Espanha, onde continuou a afirmar-se como músico talentoso e jogador de batota inveterado.
Com a ascensão de Carlos III, Farinelli foi compelido a retirar-se. Regressou a Itália e instalou-se no seu palácio perto de Bolonha Aí viveu desafogadamente o resto da vida, rodeado dos sobrinhos e criados, a quem testamentou o património.



CASTRAR PARA ENALTECER O DIVINO

Jacques Bourgeois escreveu que “paradoxalmente, é à Igreja que se deve a origem dos castrados” (1). Como prelúdio de explicação, é referida a passagem de uma Carta de São Paulo aos Corínteos, que diz: “calem-se as mulheres nas assembleias, pois não lhes é permitido falar”. Segundo a interpretação que prevaleceu para estas palavras, as mulheres não deveriam participar nos cânticos religiosos. De igual modo, o acesso aos palcos de ópera lhes seria vedado até bastante tarde, pela Inquisição e por monarcas.
Na Idade Média, muitas passagens destes cânticos eram interpretadas por grupos numerosos de crianças do sexo masculino. Mas as crianças cresciam, desenvolviam-se, as vozes alteravam-se e era necessário recrutar e ensinar outras, em ciclos que se repetiam dispendiosamente. Neste quadro, combinado com as exigências artísticas da polifonia da Renascença, tornaram-se necessárias mais e diferentes vozes, para melhor aproximar os humanos do belo e do divino. Apostou-se mais em vozes masculinas, e em Espanha desenvolveu-se uma célebre escola de falsetistas (homens que imitavam o timbre feminino).
O recurso aos falsetistas foi insuficiente, e a castração seria o método eleito, a aposta decisiva, para tentar obter sopranistas e contraltistas, para substituição das vozes femininas. Em 1662 já Francesco Sato teria lugar na Capela Sistina, num cortejo de castrados que terminaria em 1913, ainda com Alessandro Moreschi no cargo de director da música papal. Acrescente-se que há gravações com a voz deste último castrado, embora (in) devidamente preservadas.
Normalmente, as crianças eram recrutadas entre famílias numerosas e humildes, e a castração era a esperança de um futuro brilhante, com honrarias e fortuna, uns anos mais tarde. Os conservatórios proliferavam, tendo ficado particularmente famosa a escola napolitana, onde as crianças arrancadas à infância e à família teriam de “cantar todos os dias, durante seis anos, incansavelmente” (2). De um ponto de vista musicológico, parece que estes novos recursos vocais se adequariam às exigências do barroco.
Mas frequentemente as coisas não davam certo, e a maior parte dos candidatos teria que remeter-se a uma vida solitária e miserável, às vezes com um cargo menor numa das capelas que proliferavam. Como escreveu António Victorino d’Almeida (3), “o aflautado da voz degenerava num guinchar fanhoso, e os desgraçados eram mandados à vida, entregues à sorte e à chacota eterna...”.
A castração seria executada um pouco por toda a Itália, frequentemente numa espécie de “clandestinidade consentida”. Ainda assim, ficaram famosos os cirurgiões de Bolonha, donde a própria Alemanha chegou a mandar vir cirurgiões para castrar crianças locais, pois também importava fazer contas e saía mais barato...
O desenvolvimento da ópera, a partir do século XVII, viria a conferir a uma minoria de castrados a possibilidade de subir aos palcos, onde poderiam ganhar fama e dinheiro, fazendo sobretudo papéis de mulheres. As rivalidades entre eles eram notórias e ficaram registados incidentes envolvendo artistas como Carestini, Senesino, Farinelli, Caffarelli, Matteuccio, Cusanino, entre outros. As rivalidades profissionais aumentaram no final do século XVIII, quando as mulheres (sopranos) começaram a pisar os palcos e a disputar papéis, dotes vocais e artísticos, com os castrados (sopranistas, sobretudo). Ainda assim, surgem registos curiosos de respeito e admiração correspondida, e não resistimos a deixar o exemplo que foi o encontro breve mas amistoso da nossa Luisa Todi com o castrado Marchesi. Importará reter que estas rivalidades ocorrem quando ópera de corte, ópera comercial e indústria de espectáculo já se diferenciam e distinguem, podendo conferir maior ou menor prestígio ou notoriedade.


OS CASTRADOS EM PORTUGAL

Na pesquisa que fizemos, na bibliografia referenciada e noutra de que dispomos, não encontramos referência a castrados portugueses.
Porém, os castrados italianos tiveram papel determinante no desenvolvimento e na afirmação do teatro lírico em Portugal, como cantores e como empresários.
Em 31 de Março de 1755 era inaugurado o Teatro do Paço da Ribeira (A Ópera do Tejo, ou Caza da Ópera), com a peça “Alessandro nell’Indie”, do napolitano David Perez. Diz-nos Manuel Carlos de Brito (4) que “o elenco reunido para essa estreia, constituído por Caffarelli, Galieni, Luciani, Morelli, Raaff e Reina, era, sem dúvida, difícil de superar na altura”. Falamos de homens, muitos deles castrados, pois eram excepção os baixos e os tenores.
A Ópera do Tejo foi abaixo com o terramoto de 1755. Ficaram os teatros da Ajuda, Salvaterra e Queluz, e até poderíamos falar do teatro particular do Conde de Farrobo, no seu palácio das Laranjeiras (ficará para depois), mas o esplendor da ópera em Portugal viria com o Real Thetatro de S. Carlos.
O Teatro de S. Carlos foi inaugurado a 30 de Junho de 1793, com a ópera de Cimarosa La Ballerina Amante. A este propósito, Joel Costa (5) esclarece que havia “um elenco de castrados em que sobressaía Caporalini”. Uma vez mais, acrescentaremos.
Com a subida ao trono de Dª Maria I as mulheres voltaram a não poder ir ao palco. Embora a regra tivesse sido violada algumas vezes, os papéis femininos continuariam a cargo dos sopranistas castrados. Por pouco tempo, porém.
Caporalini e Crescentini continuariam a cantar e a dirigir por mais algum tempo, convertidos simultâneamente em empresários do Teatro. Caporalini acabaria por partir para Génova, tendo Crescentini ficado até 1803.
Com o acesso das mulheres ao palco do S. Carlos, naquilo a que modernamente se poderia chamar “guerra de sexos”, com Crescentini punha-se o ponto final na história dos castrados sopranistas em Portugal.

Manuel Paula Maça


Fev. 2002, revisto em 1 Setembro 2011


manoel.maza@gmail.com



1 - L’Opéra, des origines à demain, Paris, 1983

2 – História dos Castrados, Patrick Barbier, Livros do Brasil, Lisboa 1991.

3 - Música e Variações, Lisboa, 1987.

4 – Revista São Carlos, n.º1, 1986.

5 - Teatro São Carlos, breve resenha histórica, Secretaria de Estado da Cultura, Lisboa, 1993.

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